Memórias e uma radiografia do Bixiga

 

Suas ruas são arborizadas, largas avenidas compostas de casas charmosas que parecem ter vindo de outra época. Blocos de arranha-céus que formam uma paisagem urbana cinzenta no horizonte, tornando-a distante desse bairro cheio de cor e vida que é o Bixiga.

O Bixiga é um dos bairros mais tradicionais da cidade, e provavelmente o mais italiano também. Situado na região da Bela Vista, sua forte tradição e cultura vieram de seus imigrantes, a maioria vinda da região de Calábria. Aqueles que não queriam trabalhar nos cafezais foram seduzidos pelos baixos preços das terras, o que resultou em atrair também portugueses, espanhóis e negros recém-libertos.

Os imigrantes acabaram tornando-se uma importante mão-de-obra especializada em substituição à mão-de-obra escrava. Foi então que o bairro começou a criar sua identidade, surgindo sapateiros, quitandeiras, padeiros, artesãos e alfaiates e por consequência, o aparecimento de pequenas indústrias.

Antes mesmo do bairro do Bixiga nascer, é importante explicar um pouco sobre o desenvolvimento da cidade e como o sistema hidrográfico é um fator essencial à expansão da Vila de São Paulo.

Os rios Tietê, Tamanduateí e Pinheiros tiveram uma função histórica: foram usufruídos como vias de comunicação e as estradas aparecendo como canais de acesso. A vila teve sua formação no alto da colina, com a várzea do rio Tamanduateí de um lado e o Vale do Anhangabaú de outro. Os riachos Anhangabaú e Pacaembu e seus afluentes com a modernização foram canalizados sobre ruas e avenidas, facilitando a comunicação entre as mercadorias que vinham do interior e do litoral.

No final do século XVI, a cidade era constituída de um aglomerado de cem casas no topo da colina, o núcleo urbano localizava-se na região central, reproduzido pelo triângulo de três ruas: 15 de novembro, São Bento e Direita. O crescimento da economia brasileira aconteceu em meados do século XIX, com a criação de ferrovias a capital impulsionou-se, formando novos bairros através do loteamento de chácaras e novos arruamentos.

Cidade em transformação

Os bairros começaram a serem definidos, os aristocratas cafeeiros construíram seus luxuosos casarões nos Campos Elísios, e posteriormente, no bairro de Higienópolis. Próximos às ferrovias instalaram-se os bairros populares na região do Brás, Luz e Bom Retiro. Por consequência desse desenvolvimento, a Paulista ganhou lindos casarões e no Bixiga, negros libertos e calabreses foram ocupando seu espaço devido aos baixos preços de loteamento. A expansão capitalista ligada à crescente industrialização fez com que a capital crescesse desenfreadamente.

A partir de 1870, São Paulo sofreu uma enorme transformação impulsionada pelas fábricas que surgiam, a construção de prédios, bondes de tração animal e a população só aumentava. E a partir desse momento, a Paulicéia passou a ser considerada a metrópole do café, o mais populoso centro do planalto brasileiro. 

O Bixiga participou de seu processo de aculturação, pois a cidade para atrair imigrantes, fundou a Sociedade Promotora de Imigração e uma hospedaria de imigração com capacidade para quatro mil pessoas. Os italianos aproveitaram a oportunidade já que no país deles houve um superpovoamento e uma grave crise na agricultura, e no início do século atual, chegaram a constituir mais de 50% da população paulista.

Os costumes da Península passaram a serem mantidos pela população, desde sua culinária às suas músicas, comemorações e até mesmo a forma de se comunicar uns com os outros. Certas palavras e expressões muito usadas atualmente originaram-se do italiano, como por exemplo, o até-logo que foi substituído pelo “ciao”, e hoje escreve-se tchau. Sua arquitetura também foi incorporada, assim como o hábito de jogar cartas e dominó, mas foi através da cozinha que o italiano se socializou e começou a de fato se sentir em casa. E em pouco tempo, cantinas, pizzarias, padarias apareceram no cenário.

As cantinas eram ponto de encontro dos moradores, localizadas na parte baixa do bairro, próximas a Rua 13 de maio. A primeira veio em 1907, Capuano é o restaurante mais antigo em atividade de São Paulo, posteriormente em 1931 a cantina C…que sabe! e cada uma com a sua especialidade, como por exemplo a Vila Távola que fica aberta 24horas por dia e as tradicionais Montechiaro, Speranza e Roperto. Destaca-se também a padaria São Domingos, uma das casas mais tradicionais, no bairro desde em 1913.

A parte mais baixa era povoada pelas casas dos imigrantes mais pobres, em cortiços que viviam os operários italianos. A monocultura cafeeira terminou devido à crise econômica de 1929,provocando um aumento da população e dos bairros operários da cidade, assim como os números de habitações coletivas. Os cortiços nada mais são que casas sublocadas, e em algumas delas chegaram a morar oito famílias de uma vez para dividir o aluguel. A especulação imobiliária fez com que muitos casarões fossem destruídos para a construção de pequenos prédios, mudando consideravelmente o bairro, evidenciando um empobrecimento efetivo e uma deterioração urbana.

Os negros se acomodaram próximos às margens do Riacho Saracura, alegrando o Bixiga com muito samba e bom humor. E foi nesse bairro ítalo-africano, de muita vitalidade, que surgiu a escola de samba Vai-Vai, quatorze vezes campeão, oficializada no ano de 1930.

O primeiro registro de ocupação do território surgiu em 1559, como Sítio do Capão, pertencente ao português Antônio Pinto, posteriormente passou a chamar-se Chácara das Jabuticabeiras, por causa da grande quantidade de árvores dessa fruta. E em 1820 um homem conhecido como Antônio Bixiga, nome popular devido suas cicatrizes de varíola, comprou as terras. Há várias versões para a origem do nome do bairro, mas essa, até hoje, é a mais conhecida. E tratando-se de uma área territorial, é comum que ela se torne conhecida pelo nome do seu proprietário.

A fundação do bairro

Depois de mais de trezentos anos, no dia 1º de outubro de 1878, foi registrado o Dia da Fundação do Bairro do Bixiga, segundo consta no Calendário Oficial de eventos de São Paulo, da Câmara Municipal. O bairro é demarcado entre as ruas Major Diogo, Nove de julho, Rua Silva e Brigadeiro Luís Antônio, mas assim como o nome, suas limitações ainda geram polêmica.

A escritora Célia Toledo Lucena, em seu livro “Bairro do Bixiga: A sobrevivência cultural” destacaa importância no resgate da memória e que é “impossível pensar no Bixiga sem mensurar a relevância de continuidade de tempo e preservação de nosso patrimônio.” Porque segundo ela, o brasileiro sofre de uma ausência histórica devido à dominação política e econômica do país, intensificada pela falta de incentivos e inadequação de verbas. O que posteriormente, resultou no maior centro cultural e de resistência política do país, talvez por isso o bairro seja o palco de grandes atores, ondese encontra até hoje o maior número de teatros da cidade, formando a paisagem cênica mais significativa da cultura nacional.

A depressão instalada na Europa, após a Segunda Guerra Mundial, provocou o exílio voluntário de inúmeros intelectuais e artistas fazendo com o que houvesse esse estimulo cultural exacerbado na região.

De braços dados com a cultura

O primeiro teatro a surgir foi o Teatro Brasileiro de Comédia (TBc), fundado em 1948,na Rua Major Diogo, pelo industrial italiano Franco Zampari. Depois dele, em 1953 o Teatro Arena surgiu como alternativa à cena teatral da época, a intenção era apresentar produções de baixo custo, e além de buscar a dramaturgia nacional passou a incentivar a nacionalização das peças clássicas. Em 1956, veio o teatro Sérgio Cardoso, antigo Bela Vista, administrado pela Associação Paulista dos Amigos da Arte. Dois anos depois apareceu o Teatro Oficina, território tombado pelo conselho de Defesa do Patrimônio histórico, artístico, arqueológico e turístico, e em 1963, o Teatro Ruth Escobar, um dos mais famosos centros culturais da cidade e ponto de encontro de todos os guetos e suas diversas classes sociais.

Os artistas na época estavam engajados com o problema da reforma agrária, na luta por greves e em busca de seus direitos, e as peças refletiam esses anseios. Foi então que em 1968, com a Ditadura Militar, muitos teatros foram destruídos, peças paralisadas, atores reprimidos e massacrados.

E é nesse cenário quefloresce o compositor de uma das músicas mais conhecidas do repertório brasileiro, Trem das Onze é fruto do sucesso do Adoniran Barbosa, nome artístico de João Rubinato. Nasceu no dia 6 de agosto de 1910 em Valinhos, São Paulo, mas foi no Bixiga que se desenvolveu como profissional e ganhou fama. Filho de imigrantes italianos, Adoniran é considerado o pai do samba paulista.As letras tem uma linguagem popular paulistana, cheio de dialetos e ironias que mistura a língua brasileira com a de seus pais, e seu sotaque ganhou a simpatia dos moradores, além do seu nome em uma rua do bairro.

Adoniran faleceu em 1982 devido a um enfisema pulmonar, mas seus pertences são um dos 1,5 mil itens de propriedade do Museu da Memória do Bixiga, atualmente fechado e sem previsão de abrir suas portas devido à falta de patrocínio. Inaugurado no ano de 1981 e localizado na Rua dos Ingleses (parte alta), nasceu na casa do Armando Puglisi, considerado o maior “guardião do bairro”. Armandinho como ficou conhecido, tem uma frase que diz “O Bixiga é um estado de espírito”, e foi por esse amor ao bairro que também criou o extinto “Jornal do Bixiga”, foi diretor e presidente da Vai-Vai e idealizador do famoso bolo de aniversário de São Paulo, a fim de comemorar a data com um bolo gigante, de um metro correspondente a cada ano que completava. A ideia surgiu em 1985 e continua até hoje, na Rua 13 de maio, mesmo depois de sua morte em 1994.

O Museu emergiu porque ele recolhia objetos das casas quando algum morador falecia, atualmente, os itens são utilizados pelos produtores de televisão em novelas de época, e as mais de 8mil fotografias têm como finalidade de reconstituir a história do bairro. Tombado pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrocínio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (Compresp), antes de virar um Museu o lugar ficou abandonado por mais de 30 anos. Os atuais proprietários têm como objetivo restaurar o imóvel, digitalizar o acervo e promover cursos, porém estão em busca de recursos financeiros.

Além do Museu, casarões e construções históricas deram origem a pontos turísticos do bairro, como a escadaria do Bixiga, palco de peças e filmes publicitários, que dá acesso ao Museu do Óculos, a casa da Dona Yayá, que foi uma das primeiras chácaras e atualmente sede do Centro de Preservação Cultural da USP, os arcos da Rua Jandaia, constituído no século XIXI e descoberto apenas na década de 80 por acaso quando algumas construções foram demolidas, o “Caminito Brasileiro”, conjunto de casas e estabelecimentos comerciais que tiveram suas fachadas restauradas em 2009 ganhando cores vibrantes e alegres (o nome faz referência ao famoso ponto turístico de Buenos Aires) e a Feira de Antiguidades, localizada na praça desde 1982 com cerca de 300 barracas com diversos tipos de roupas, livros, joias, obras de arte, imóveis  e LPS.

Memórias

Destaca-se também a Vila Tororó, símbolo do Bixiga imigrante, construída pelo tecelão português Francisco de Castro em 1922, com 4,5m quadrados, foi à primeira vila de São Paulo, com 37 casas e conhecido como Casa Surrealista. Aproveitando a nascente do Riacho do Vale do Itororó, foi também a primeira residência particular da cidade a ter uma piscina. Foi leiloada para cobrir dívidas e acabou arrematada pela Santa Casa de Indaiatuba, que depois alugou para outras pessoas. Apesar de tombado pelo Conselho Municipal, está muito deteriorado.

O bairro é caracterizado por profissionais artesanais, alguns já extintos, mas outros como o amolador de facas é mantido até os tempos atuais. E apesar dessa crescente deterioração o Bixiga ainda tem em seu caráter humano uma magia que só vivenciando para entender. Sua cultura ainda muito bem mantida, assim como seus rituais e festas, e a mais conhecida é a Festa da Achiropita.

Comemorada desde 1926, a Festa da Achiropita acontece em todos os fins de semana do mês de agosto, em homenagem a padroeira do bairro. A renda da festa é revertida para obras sociais da paróquia Nossa Senhora Achiropita, que recebe também a procissão em louvor à padroeira. Estima-se que em média duzentas mil pessoas aproveitam a festa em cada final de semana, mais de 900 funcionários trabalhavam no evento, dez mil litros de vinho e onze toneladas de macarrão são consumidos por noite.

Célia explica em seu livro que “as culturas do bairro são mantidas, mas como uma energia renovadora, condizente à continuidade histórica, sem cair naquela preservação estática.” Isso quer dizer que apesar da tradicionalidade das festas, a maneira que esses festejos se dimensionam tem um teor de resistência às reações impostas pelo modernismo. E apesar do Bixiga ser um universo complexo com graves problemas urbanos, sua diversidade étnica e cultural é a herança de uma civilização tradicional e consistente, que luta por essa cidade carente de memória.

Até hoje é possível ver as crianças brincando nas ruas, nas sacadas a prosa entre os amigos, sua poesia em pequenas vilas que conservam seu espírito cheio de tradições e memórias. Um bairro histórico, de inúmeras histórias em cada cômodo dos casarões que abriga inúmeras famílias, personagens e um palco de alegria, cheiro de comida gostosa e de um cenário antigo e popular. Sua arquitetura é humilde e delicada, cheia de autenticidade, gestos e uma fala cantada que dá vontade de dançar em suas festas e rezar por suas santas.

A comunidade fez sua história, mas ela precisa ser democraticamente viabilizada, oferecendo disponibilidade de recursos proporcionando uma integridade executável. O Bixiga foi percursor da tarefa de recuperação do verdadeiro retrato da capital paulista. E um povo que não valoriza o seu passado, não tem nem presente e nem futuro.

Thays Bittar, paulistana, é fotógrafa. Escreveu este texto em 2013, quando era estudante de jornalismo na Universidade Metodista de São Paulo

 

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