Metacrônica

Eu pegaria o ônibus no ponto entre a Frei Caneca e a Augusta e seguiria por cerca de vinte e cinco minutos até descer no quarto ponto da Pedroso de Morais – originalmente Pedroso de Moraes, sertanista conhecido como o “Terror dos Índios” (preferi o nome). Cinco minutos caminhando e pronto.

O roteiro de volta não precisava de planejamento, poderia ser decidido depois. Importante mesmo era me deslocar entre esses dois pontos da cidade – escolhidos não por mim, mas por colegas em um curso de escrita literária – de maneira ativa, orgânica e observadora para, a partir dessa experiência, produzir uma crônica.

Empolgada com a proposta, antecipei em minha cabeça algumas possíveis narrativas, entrelaçando memórias distantes a cenas que observaria durante meu percurso. Falaria sobre a primeira vez em que andei de ônibus sozinha, entre meus nove e dez anos, quando, depois de fazer o trajeto comigo entre as avenidas Abraão de Morais e D. Pedro I por duas vezes, minha mãe se libertou de minhas visitas semanais ao ortodontista. Comentaria que à época entrávamos pela porta traseira do ônibus; que, logo acima do para-brisas, na parte interna do veículo, havia uma placa com os dizeres “É proibido fumar cachimbo, charuto ou cigarro de palha”; e que a maioria dos motoristas, com suas camisas azuis de colarinhos tortos e mangas curtas, fumava sem parar. 

 O roteiro de volta não precisava de planejamento, poderia ser decidido depois. Foto: iStock.

Talvez nesse momento inserisse no texto um passageiro observado no recente e até então inédito percurso – um homem alto, magro, óculos escuros, fones no ouvido e cheiro de Malboro, que teria embarcado na Dr. Arnaldo e sentado a meu lado. Ou o inverso: poderia começar o texto pelo tal passageiro para então resgatar minhas lembranças.

Fantasiei ainda em minha crônica uma moça de calças jeans muito justas, unhas vermelhas, sandálias brancas e cabelos pretos, que teria entrado no ônibus no último ponto da Cardeal perguntando como chegar ao CEAGESP. E essa cena se cruzaria com outra, também da infância: meus pais e seu grupo de amigos dividindo, na garagem de casa, compras noturnas feitas no atacado do então CEASA.

Mais algumas imagens e fecharia meu texto com paralelos entre o final do trajeto e o final da tarde – já que, claro, teria ido à tal praça em horário que permitisse ver o fenômeno que a fez famosa. (Uma eventual visita à Amoreira, ali na Macunis, chegou a ser imaginada, mas a sensação de talvez não conseguir integrar esse pequeno desvio consumista à minha futura narrativa me fez abandonar a ideia.) 

Mas eis que, naquela semana, o imprevisto se impôs. A temperatura em São Paulo despencou, meu pai adoeceu, meu carro quebrou. Com uma viagem marcada para dentro de poucos dias e uma lista insana de obrigações prévias, desisti (a esta altura da vida, já aprendi a não lutar contra o imponderável). Não iria à Paulista, não pegaria o ônibus, não veria a moça dos jeans agarrados nem o por-do-sol dos casais apaixonados (e garotos chapados).

Apenas escreveria a crônica. E a ela daria outro final.

**
Valéria Midena, arquiteta por formação, designer por opção e esteta por devoção, escreve quinzenalmente no São Paulo São. Ela é autora e editora do site SobreTodasAsCoisas.

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