Na região da Luz, projeto leva arte e afeto a legião de excluídos

“Há 20 anos isso é assim”, diz um homem sentado na porta de um bar da rua Barão de Piracicaba. Desanimado, ele observa as pessoas tentando se esquivar da água suja que ultrapassa o limite da guia. Não quer se identificar, mas conta que “vira e mexe aparece um caminhão pra desentupir bueiros, mas nunca desentope. Ninguém liga pro que acontece aqui”.

Quem caminha distraído pelo bairro tem a mesma sensação: tudo parece esquecido e marcado pelo descaso. Mas um visitante mais atento identifica que um pé de maracujá cresce com impressionante altivez próximo a um bar. Que nas paredes e muros das ruas há grafites coloridos, lambe-lambes, frases e poesias de artistas que, usualmente, só são vistos em áreas mais nobres da cidade – como a celebrada Vila Madalena. Novidades que chamam atenção na paisagem de um lugar que a imensa maioria dos paulistanos prefere fingir que não existe.

 
No entorno do “fluxo” – a área onde se concentra a maior parte dos usuários e comerciantes de drogas, com predomínio do crack –, as pessoas contam que ruas já foram palco de sessões de cinema, debates, saraus musicais e poéticos, danças e plantios coletivos em canteiros antes abandonados.

As reuniões preparatórias e a realização dessas ações por vezes juntaram, num mesmo espaço ou em torno de uma mesa, moradores, médicos, policiais, dependentes químicos, crianças e comerciantes. Está claro que algo de novo aconteceu na Cracolândia, para além das políticas de saúde pública e das intervenções que polícia e grupos religiosos executam há anos tentando moralizar a área.

Essa movimentação que deu mais cor e alegria a um cenário habitualmente sombrio e cinza – além de estigmatizado socialmente – tem por trás profissionais que, desafiando o senso comum, se uniram em um projeto chamado Casa Rodante, desenvolvido pelo coletivo artístico Casadalapa.

 
Desde 2014 até esse outubro chuvoso, uma parceria do grupo com a Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania da prefeitura de São Paulo viabilizou um projeto que somou esforços às políticas de redução de danos do programa De Braços Abertos.

Um dos seus idealizadores, o cenógrafo e grafiteiro Julio Dojcsar, explica que a Casa Rodante – mesmo sem ser Artesanato feito pelos moradores. Foto: Marcia Minillo.da saúde e da assistência social – aceitou o convite da secretaria e se embrenhou “no território mais treta da cidade de São Paulo.”

A “casa” é rodante porque foi construída sobre uma caminhonete, a fim de que pudesse rodar pelo bairro. Uma forma que o grupo encontrou para estabelecer diálogos com a vizinhança e, mais importante, para ser um facilitador dos contatos entre os que ocupam o território. “Somos artistas que acreditam que a cidade é para ser ‘desproibida’”, explica Dojcsar . No início de outubro, ele escreveu no Facebook uma comovida despedida do projeto – com a troca de comando na prefeitura, o De Braços Abertos e suas parcerias serão desativados.

“Não consigo pensar essas ruas sem o pessoal da Casa Rodante”, diz Vilma de Freitas, moradora da ocupação Esperança da Paz e mãe de 5 filhos. “Eles trouxeram vida e alegria pra cá, meus filhos aprenderam muito mais com eles do que com a escola. Foram para a Pinacoteca, Masp, Memorial  da América Latina. E foram de táxi, imagina a alegria deles, que nunca tinham andando num carro?”

 
Pamela Freitas da Paixão, de 14 anos, e Thiago dos Santos, de 11, endossam o inconformismo de Vilma com o final do projeto. “A gente dançou e brincou muito com eles, não pode acabar, não”,  disse Pamela.
Sabrina, Vilma Freitas com a filha Isadora no colo, Tiago e atrás Isaías, filho de Vilma. Foto: Marcia Minillo.
 
Lambes, plantas e intervenções artísticas em muros e ruas. Foto: Marcia Minillo.
A psicóloga Laura Shdaior, que atua diretamente com os usuários no De Braços Abertos, ressalta que a Casa Rodante trouxe a possibilidade de desconstruir parte do discurso estagnado que se produz sobre a Cracolândia. “Seu grande mérito foi o de fomentar o relacionamento entre as várias pessoas que moram ou circulam por aqui. O usuário precisa ser visto para além da droga e, por meio do diálogo e da troca, o projeto conseguiu isso.”

Membro da equipe da Casa Rodante, o psicólogo Cristiano Ribeiro Vianna, define o território hoje como “um grande quilombo”, referência à crescente presença de refugiados vindos da África que ali se instalaram, ao lado A Casa Rodante. Foto: Marcia Minillo.de muitos imigrantes da América Latina. “É uma população muito heterogênea que, em comum, coleciona um histórico de humilhações sociais, de situações diversas de exclusão.”

 
A casa funcionou como um convite ao convívio entre essas pessoas. A caminhonete chama atenção pelo visual coberto de cartazes lambe-lambe. Está equipada com bancos e mesas, som, cinema, material para crianças e livros. Quem se aproxima, é prontamente acolhido com água, café e uma conversa olho no olho. Na trupe que acompanha a casa – que conta com apoio ainda de duas bicicletas equipadas – estão o palhaço Clerouak, o educador Ricardo Carvalho e os responsáveis pela roça urbana: Cauê Maia e Marina Alegre. Artistas estão à frente do projeto também, grafitando muros, bordando, escrevendo poesia.

O diálogo surge a partir dessas intervenções, lembra a geógrafa Marina, envolvida com o plantio dos canteiros. Nele, as pessoas se mostram para além da realidade sombria do lugar: “Um policial se aproximou e disse que entendia de agricultura. Usuários de drogas e alguns moradores compartilham conosco o que conhecem sobre a terra. Muita gente que vive aqui veio da roça.”

Nessa troca de conhecimentos, incentiva-se a ideia do cuidado, da relação de cada um com o espaço em que vive e com o corpo que habita, pontua Cristiano. “A redução no uso do crack vem como consequência da melhora da qualidade de vida”, acredita.

 
Cosme Aleixo da Silva, ex-marido de Vilma e também morador da Esperança da Paz, promete lutar pela permanência do projeto. Garante que, tão logo o prefeito João Dória assuma, irá à Câmara dos Vereadores para brigar pela permanência da Casa Rodante na Cracolândia. “Vou falar com esse vereador que veio aqui pedir voto pro Dória”, diz, enquanto mostra um cartaz do político. Quem tá no fluxo é porque perdeu tudo, sabe? Não tem mais família, nada. Os artistas trouxeram alegria e vida pra eles, mudaram isso aqui, minhas crianças foram mais felizes. Como eles vão embora?”, questiona.

Com palavras simples, Cosme revela que o uso do crack frequentemente é uma consequência, e não a causa dessa exclusão social. Uma exclusão que a Casa Rodante ajuda a combater.

 

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Por Maria Lígia Pagenotto no Sampa Inesgotável em parceria de conteúdo com o São Paulo São.

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