Quem caminha distraído pelo bairro tem a mesma sensação: tudo parece esquecido e marcado pelo descaso. Mas um visitante mais atento identifica que um pé de maracujá cresce com impressionante altivez próximo a um bar. Que nas paredes e muros das ruas há grafites coloridos, lambe-lambes, frases e poesias de artistas que, usualmente, só são vistos em áreas mais nobres da cidade – como a celebrada Vila Madalena. Novidades que chamam atenção na paisagem de um lugar que a imensa maioria dos paulistanos prefere fingir que não existe.
As reuniões preparatórias e a realização dessas ações por vezes juntaram, num mesmo espaço ou em torno de uma mesa, moradores, médicos, policiais, dependentes químicos, crianças e comerciantes. Está claro que algo de novo aconteceu na Cracolândia, para além das políticas de saúde pública e das intervenções que polícia e grupos religiosos executam há anos tentando moralizar a área.
Essa movimentação que deu mais cor e alegria a um cenário habitualmente sombrio e cinza – além de estigmatizado socialmente – tem por trás profissionais que, desafiando o senso comum, se uniram em um projeto chamado Casa Rodante, desenvolvido pelo coletivo artístico Casadalapa.
Um dos seus idealizadores, o cenógrafo e grafiteiro Julio Dojcsar, explica que a Casa Rodante – mesmo sem ser da saúde e da assistência social – aceitou o convite da secretaria e se embrenhou “no território mais treta da cidade de São Paulo.”
A “casa” é rodante porque foi construída sobre uma caminhonete, a fim de que pudesse rodar pelo bairro. Uma forma que o grupo encontrou para estabelecer diálogos com a vizinhança e, mais importante, para ser um facilitador dos contatos entre os que ocupam o território. “Somos artistas que acreditam que a cidade é para ser ‘desproibida’”, explica Dojcsar . No início de outubro, ele escreveu no Facebook uma comovida despedida do projeto – com a troca de comando na prefeitura, o De Braços Abertos e suas parcerias serão desativados.
“Não consigo pensar essas ruas sem o pessoal da Casa Rodante”, diz Vilma de Freitas, moradora da ocupação Esperança da Paz e mãe de 5 filhos. “Eles trouxeram vida e alegria pra cá, meus filhos aprenderam muito mais com eles do que com a escola. Foram para a Pinacoteca, Masp, Memorial da América Latina. E foram de táxi, imagina a alegria deles, que nunca tinham andando num carro?”
![Sabrina, Vilma Freitas com a filha Isadora no colo, Tiago e atrás Isaías, filho de Vilma. Foto: Marcia Minillo.](https://saopaulosao.com.br/wp-content/uploads/2016/12/criancas_craco_640x427.jpg)
![Sabrina, Vilma Freitas com a filha Isadora no colo, Tiago e atrás Isaías, filho de Vilma. Foto: Marcia Minillo.](https://saopaulosao.com.br/wp-content/uploads/2016/12/criancas_craco_640x427.jpg)
![Lambes, plantas e intervenções artísticas em muros e ruas. Foto: Marcia Minillo.](https://saopaulosao.com.br/wp-content/uploads/2016/12/carinho_craco_640x427.jpg)
![Lambes, plantas e intervenções artísticas em muros e ruas. Foto: Marcia Minillo.](https://saopaulosao.com.br/wp-content/uploads/2016/12/carinho_craco_640x427.jpg)
Membro da equipe da Casa Rodante, o psicólogo Cristiano Ribeiro Vianna, define o território hoje como “um grande quilombo”, referência à crescente presença de refugiados vindos da África que ali se instalaram, ao lado
O diálogo surge a partir dessas intervenções, lembra a geógrafa Marina, envolvida com o plantio dos canteiros. Nele, as pessoas se mostram para além da realidade sombria do lugar: “Um policial se aproximou e disse que entendia de agricultura. Usuários de drogas e alguns moradores compartilham conosco o que conhecem sobre a terra. Muita gente que vive aqui veio da roça.”
Nessa troca de conhecimentos, incentiva-se a ideia do cuidado, da relação de cada um com o espaço em que vive e com o corpo que habita, pontua Cristiano. “A redução no uso do crack vem como consequência da melhora da qualidade de vida”, acredita.
Com palavras simples, Cosme revela que o uso do crack frequentemente é uma consequência, e não a causa dessa exclusão social. Uma exclusão que a Casa Rodante ajuda a combater.
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Por Maria Lígia Pagenotto no Sampa Inesgotável em parceria de conteúdo com o São Paulo São.