O carro elétrico e autônomo pode salvar o mundo?

Em números redondos, estavam em circulação 700 milhões de automóveis e 300 milhões de caminhões e ônibus. Esta marca foi atingida praticamente 100 anos depois da fabricação do Modelo T, lançado em 1908. Como se sabe, Henry Ford revolucionou a indústria moderna, ao adotar a linha de montagem para a produção em série de veículos de combustão interna, com base na energia fóssil.
 
O automóvel se tornou o produto par excellence do século XX e virou objeto de desejo, ícone da liberdade individual, símbolo de status social e fonte de geração de lucro para a indústria automobilística e toda a cadeia produtiva envolvida na produção de insumos, energia e autopeças. Porém, o acúmulo exponencial e onipresente de automóveis ficou disfuncional, pois milhões de pessoas ficam presas diariamente em engarrafamentos monstruosos (“carmageddon”), com enorme perda de tempo, saúde e dinheiro.

Vida sobre rodas

A cultura do consumismo e o mito da universalização da propriedade do automóvel, em geral, não leva em conta os custos diretos provocados pelos acidentes de trânsito, as mortes e as internações e nem os custos indiretos da degradação ambiental gerada pela extração de minérios e outras matérias-primas. Os carros são uma grande fonte de emissão de gases de efeito estufa, responsáveis pelo aquecimento global e pela subida do nível dos oceanos.

Mas enquanto os planejadores urbanos não encontram solução para o caos da superlotação de carros, a tecnologia promete superar os impasses atuais por meio da utopia pós-moderna do carro elétrico, autônomo e compartilhado. Alguns avanços já são reais.

A produção global de carros elétricos plug-in (cuja bateria utilizada para alimentar o motor elétrico pode ser carregada diretamente por meio de uma tomada) aumentou mais de 10 vezes entre 2011 e 2015, passando de pouco mais de 50 mil unidades para cerca de 600 mil unidades. A China saltou para a liderança global da produção de carros elétricos. Segundo projeções da Bloomberg New Energy Finance (BNEF) pelo menos um terço de todos os veículos vendidos no mundo em 2040 serão elétricos.

Elon Musk, fundador e principal acionista da Tesla Motors (fábrica de carros elétricos) e da SolarCity (fabricante de baterias elétricas e energia solar), promete revolucionar a produção de automóveis e de energia, ao construir telhados solares que dobrem as funções das telhas tradicionais com a recolha de energia renovável. Ele diz: “Não é uma coisa no telhado. É o telhado”. Assim, cada domicílio será uma “fábrica” de energia solar, podendo fornecer carga para abastecer os aparelhos domésticos e os automóveis.

A chave que liga o telhado solar com o carro elétrico é a bateria doméstica para armazenamento de eletricidade. As novas versões (como a Powerwall 2) estão cada vez mais poderosas e mais baratas. No conjunto, os novos desenvolvimentos tecnológicos poderão garantir a prevalência do prossumidor (produtor + consumidor), em uma economia de baixo carbono e em conformidade com o Acordo de Paris (assinado em 2015 e ratificado em novembro de 2016).

Carro sem motorista

Mas a principal promessa utópica é o carro autônomo (sem motorista). Vários modelos estão sendo testados e o objetivo é integrar um conjunto de tecnologias que prometem viabilizar uma direção mais segura e confiável do que poderia ser obtida por uma pessoa comum. Os veículos autônomos utilizam um sistema de controle computacional que permitem dispensar o motorista e abrir novas fronteiras para o velho automóvel.

Os tecnófilos otimistas preveem uma verdadeira revolução que viria da integração do carro elétrico, autônomo e sem a propriedade individual. O compartilhamento coletivo reduziria muito o carro particular, pois não seria necessário, nem aconselhável, reservar uma garagem para guardar os automóveis de uma família. As residências teriam mais espaço para as pessoas e ficariam mais baratas.

Na tecnópolis do futuro, um simples aplicativo de celular permitirá conectar a saída de casa, do trabalho ou de uma festa, interligando com o local de destino. O carro viria de forma autônoma. A população se locomoveria com um menor número de carros em circulação. O automóvel se tornaria apenas um meio ( como se fosse um táxi) e não um fim. Neste mundo de sonho, haveria muitos ganhos com o uso dos carros compartilhados autônomos. Os engarrafamentos seriam reduzidos ou eliminados, assim como a perda de tempo provocada pela imobilidade urbana.

Já existe o embrião da nova geração desse automóvel, pois estão em teste algumas experiências de veículos elétricos, autônomos e compartilhados. Em Cingapura, os primeiros táxis sem motorista começaram a circular, de forma experimental, em agosto de 2016. Por enquanto, seis táxis circulam em uma zona de 4 quilômetros quadrados. O Google tem feito teste com carros autônomos na Califórnia, no Arizona e em Washington. Nas ruas de Helsinque, na Finlândia, dois micro-ônibus circulam sem motoristas, levando até nove passageiros entre duas estações.

Os defensores do compartilhamento argumentam que haverá uma grande redução do número de veículos no mundo, pois, atualmente, os carros ficam parados por mais de 90% do tempo. Para cada carro em movimento, existem nove carros parados. Isto exige um gigantesco estoque de veículos, o que demanda grande quantidade de materiais extraídos da natureza e grande quantidade de lixo – os aterros de pneus são um triste exemplo.

Para funcionar, plenamente, este novo modelo de automóvel precisaria estar bem articulado com o transporte público coletivo de maior distância e com um total redesenho da malha rodoviária das cidades e dos países. Seria uma transformação radical do padrão de consumo e da oferta de serviços.

Homem em ponto de abastecimento de carro elétrico em Paris. Foto: AFP.

Sonho ou realidade?

Resta saber até que ponto a generalização do carro elétrico, autônomo e compartilhado é apenas um sonho ou pode se transformar em realidade e superar o pesadelo dos atuais problemas urbanos.

A despeito das vantagens expostas acima, uma transformação de tal dimensão não ocorreria sem oposição da indústria automobilística e até sem o protesto dos sindicados de trabalhadores que, corporativamente, iriam resistir à perda de empregos. As concessionárias de automóveis, tal como existem hoje, desapareceriam. Idem para os taxistas.

Por outro lado, os esperançosos acreditam que as vantagens podem superar largamente o modelo atual do carrocentrismo que encarece e prolonga os deslocamentos urbanos e causam tantos danos ao meio ambiente. No novo cenário, haveria uma redução da produção de veículos, aço, vidro, borracha, etc., menor impacto ambiental, com maior satisfação das pessoas, além de possibilitar a democratização do acesso e do controle das novas tecnologias.

O compartilhamento reduziria o Produto Interno Bruto (PIB), como medido nas estatísticas atuais. Menos consumo de bens materiais e mais utilização de serviços coletivos. Seria um reforço da tese do decrescimento econômico, já que a redução da produção de bens é uma necessidade cada vez mais premente, pois a humanidade já ultrapassou a capacidade de carga do Planeta. Seria uma forma de garantir a prosperidade e o bem-estar das pessoas com a redução do fluxo metabólico entrópico e uma maior preservação dos ecossistemas.

Todavia, não será fácil superar a cultura do individualismo propiciada pela propriedade de carro individual, pois haverá dificuldades técnicas e políticas. Teoricamente, esse tipo de revolução poderia aumentar o bem-estar geral da sociedade, melhorando a vida das pessoas, sem promover o crescimento econômico degradador dos recursos naturais.

Mas é difícil imaginar que tudo isto possa ocorrer em países que sequer conseguiram universalizar o saneamento básico, os serviços de saúde e a educação de qualidade. Provavelmente, para alcançar a utopia do carro elétrico, autônomo e compartilhado será preciso superar a distopia da pobreza, dos conflitos, da violência e da desorganização da cidade e do campo. Mas como diz o provérbio italiano: “Ao se pedir o impossível, obtém-se o melhor possível”.

***

José Eustáquio Diniz Alves, sociólogo, mestre em economia e doutor é professor titular da Escola Nacional de Ciências Estatísticas (ENCE) do IBGE. 

*Artigo publicado originalmente no Projeto Colabora.

 

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