Enquanto o futuro não chega, os cariocas vivem uma lua de mel com o centro. A região parece um formigueiro, e com mais locais que turistas. Não pense na Copa do Mundo de 2014, com brasileiros, argentinos e chilenos festivos e bêbados nos principais pontos de boemia. Os Jogos imprimem um ambiente mais comportado e “família”. No Porto Maravilha (como foi batizado), casais apaixonados tiram fotos em frente à pira olímpica ou com vistas da Baía de Guanabara de um ângulo raro até poucos meses atrás. Amigos se esparramam pelo chão para assistir às competições exibidas ou se aglomeram em frente aos palcos e artistas de rua para ver pequenos ou grandes espetáculos. Famílias almoçam em food trucks e se espalham pelos bancos, gramados e na escadaria da estátua do Barão de Mauá. Lojas e atrações promovidas pelas marcas patrocinadoras dos Jogos estão sempre lotadas, como um bungee jump da montadora Nissan. Crianças escalam o letreiro da praça Mauá que forma a expressão “Cidade Olímpica”.
A urbanista Marcia Montiel, de 50 anos, mostra para seus filhos e marido uma enorme foto do antes e o depois da reforma da praça Mauá. “Foi o meu projeto de fim de curso da faculdade: a restauração da praça e a instalação de um centro cultural. Não previa a destruição da perimetral, algo que não se cogitava nessa época, e o bonde passava por outro local… Mas ficou muito bom como está”, diz, emocionada, a funcionária da prefeitura da cidade de Macaé. O que faria de diferente? “Colocaria mais árvore. Tem muito granito, então no verão fica muito quente. Quando chove, reflete muito. Falta sombra para esticar uma toalha e deitar.”
Críticas ao Porto Maravilha
A crítica de Montiel não é isolada. São muitos os que, entre cidadãos e arquitetos, acreditam que a cara do porto poderia ser outra: com menos concreto e granito e mais gramado e árvores, aproveitando melhor a energia solar e, em tempos de mudança climática, se planejando para a elevação do nível do mar.
Mas não só isso. As obras, de 8 bilhões de reais e financiadas com dinheiro do FGTS, foram tocadas pela concessionária Porto Novo, que reúne as empreiteiras Odebrecht, OAS e Carioca Engenharia. Enquanto se desenrola a Operação Lava Jato, vozes da oposição —movimentos sociais, urbanistas e partidos como o PSOL— criticam o alto custo da obra, pago com dinheiro dos trabalhadores, e levantam a suspeita de pagamentos de propina durante a reforma, apontando para a estreita relação entre o PMDB carioca (Eduardo Paes, Eduardo Cunha, Sérgio Cabral, entre outros) com as empreiteiras envolvidas em vários escândalos de corrupção.
Há ainda um debate sobre o modelo de gestão. Uma vez finalizada as obras, a Porto Novo possui a concessão da região até 2026, ficando responsável pela manutenção do lugar, operação de tráfego, iluminação, entre outros serviços. Ao EL PAÍS, a Porto Novo explica que tem de cumprir várias exigências de manutenção estabelecidas pela prefeitura do Rio no contrato para que seja remunerada todo o mês.
Marcelo Freixo, candidato a prefeitura do Rio pelo esquerdista PSOL, lembra que são “cinco milhões de metros quadrados, com 75% de terrenos públicos”, nas mãos de grandes empreiteiras, com projetos de erguer grandes torres corporativas. Acredita que a reforma do porto poderia estar casada com “um projeto de cidade mais justo”, sem inviabilizar a festa e os investimentos em entretenimento. “Acho ótimo que tenha festa, food truck, balão… Mas o fato é que 38% dos empregos formais da cidade estão no centro. Há uma concentração enorme de pessoas ali que, às vezes, demoram mais de duas horas para chegar de outros bairros. Essa região poderia servir para projetos de habitação, de moradia popular, de prédios públicos com preços de aluguel abaixo do mercado. É moderno, é o que Paris e Nova York vêm fazendo”, explica o deputado estadual ao EL PAÍS. “Nada contra o Museu do Amanhã, mas e o nosso passado? A região foi porta de entrada de escravos, mas todo o passado negro está dentro de um contêiner. Berlim tem um museu sobre o holocausto, por que não existe um museu da escravidão na zona portuária?”, questiona.
Por ora, o espírito dominante parece ser o do saxofonista Ardelei Ferreira, de 47 anos, artista de rua que se apresenta na zona. “O futuro vai depender da segurança, mas também de que as pessoas venham e ocupem a região”, diz ele. “Sei que houve muita roubalheira, muita dor de cabeça… Mas eu esqueci tudo. A gente precisava de um lugar como esse”.
***
Felipe Betim do Rio de Janeiro no El País.