Por uma educação para o açúcar

Ele é uma coisa que tem seu lugar, é óbvio, mas anda, na nossa cultura, fora de lugar. Não só os brasileiros, mas uma parcela expressiva da população ocidental precisa de uma nova educação para o açúcar. Resquícios da cultura da produção colonial ainda fazem com que nos comportemos diante do açúcar como se ele fosse não uma “especiaria”, mas um ingrediente a ser usado fartamente. Além disso, ele se associou a outros produtos coloniais na culinária ocidental: o café, o chá e o chocolate – coisas que nas suas origens não dependiam dele.

Não é preciso dizer quanto o seu excesso é nocivo à saúde (assim como o sal), e nem lembrar as epidemias modernas associadas ao descontrole no uso desses produtos. 

Ingleses e norte-americanos comiam, por volta de 1900, cerca de 40 quilos de açúcar per capita anual. O açúcar era elemento importante da dieta energética dos proletários e, assim, resvalou da condição de “tempero” dos alimentos para aquela de ingrediente. Combustível das máquinas humanas, energia que movia as fábricas. É a época da invenção das balas (candies), puro açúcar! As tecnologias poupadoras de mão de obra deveriam também poupar açúcar. Mas não. Ficou o elogio do açúcar por toda parte, como se fosse o supra-sumo do alimento. 

E o gosto popular encalhou nele. O café adoçado em Minas Gerais, a média com pão e margarina no boteco da esquina. Meio copo de açúcar. Como se tivessemos um “gosto” atávico, separado da história da escravidão, da maquina mercante que produzia o açúcar, a droga que era a “riqueza do Brasil”.

Entre nós, o consumo foi crescendo nos últimos 60 anos. Na década de 1930, o consumo médio anual era de 15 quilos por brasileiro. Nos anos 1940, esse número aumentou para 22; na década de 1950, passou para 30; 32 nos anos 1960. Em 1970, a média já era de 40 quilos e, em 1990, esse índice estabilizou-se em 50 quilos por habitante. Andamos para trás em relação à tendência mundial.

O Brasil é o maior produtor de açúcar (21% da produção mundial). O segundo e o terceiro maiores produtores são Índia e China, com participação aproximada de 15% e 10%, respectivamente.

Mas nos tornamos também um dos maiores consumidores mundiais do produto per capita. Hoje, cada brasileiro consome entre 51 e 55 quilos de açúcar por ano, ao passo que a média mundial por habitante corresponde a 21 quilos. Enquanto nos Estados Unidos e CEE o consumo é de 30 kg, os chineses não passam de 6 kg por habitante/ano. Isso quer dizer que se pode ser grande na produção, mas não se precisa ser campeão no consumo.

Imaginando a família média brasileira, podemos representar seu consumo através de 3 sacas de açúcar anual. Daquelas sacas que os estivadores mal conseguem sustentar. Imagine-as na sua despensa no primeiro dia do ano. Achará impossível come-las até 31 de dezembro! Mas comerá! Boa parte disfarçada nos alimentos industriais, boa parte consumida fora de casa.

Em termos realistas, não mais imaginados, o brasileiro consume em casa, em média, 17,9 quilos por ano, e mais 2,6 quilos de doces e produtos de confeitaria comprados prontos. Só para se comparar, come 6 quilos de carne e 9,5 quilos de feijão no mesmo período. 

A doçaria refinada que se fazia na Europa, com açúcar do Brasil, sabia utiliza-lo com moderação. Mas não imitamos a Europa nisso: “acaboclamos” as receitas metendo-lhes mais açúcar! E veio a indústria de alimentos no pós-guerra, aproveitou esse vício brasileiro, percebeu o quanto o açúcar era barato como ingrediente e… dá-lhe mais açúcar! O “pão de açúcar” está na paisagem, nos engenhos, nos supermercados.

O Brasil é o maior produtor de açúcar (21% da produção mundial). Foto ShutterStock.E nos acostumamos a raciocinar açucaradamente. Tome uma receita de bolo na internet. Não raro teremos 2 xícaras de açúcar para 2 de fubá. E as pessoas foram levadas a acreditar que se diminuírem o açúcar a receita “não dá certo”! Fincamos o pé em nutella, leite condensado, cocadas açucaradas, como se o mundo do açúcar em excesso fosse onde reside o prazer exclusivamente. Círculo vicioso, prisão ideológica.

Tirante alguns produtos culinários (caramelo, suspiro, etc) o açúcar não tem função na receita senão a de conferir doçura. Por isso o seu uso pode ser revisto amplamente. Nos bolos, nos cremes, nos sorvetes, no chocolate, em algumas geléias e assim por diante.

A educação para o açúcar significa trabalhar o açúcar gastronomicamente, como fonte de prazer e não como “alimento energético”, afastando assim os riscos do excesso. Ela precisa da adesão de todos para se difundir e produzir efeitos: os que cozinham em casa, os chefs, a imprensa, as escolas e assim por diante. Mais do que uma simples repressão dos hábitos arraigados, é um movimento de revisão da própria culinária, uma forma dela evoluir em sintonia com os requisitos da vida moderna, evidenciando que seu uso moderado traz mais prazer e valoriza a vida. Este movimento, aliás, está em sintonia com o que dizia Escoffier sobre o sentido da transformação gastronômica: ele visa, essencialmente, adaptar a velha culinária às exigências da vida moderna, para que a culinária continue a ser fonte de prazer.

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Carlos Alberto Dória, sociólogo e conselheiro do São Paulo São, tem vários livros publicados sobre sociologia da alimentação. Mantém e edita o blog e-BocaLivre.

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