‘Ruas de Memória’ quer substituir nomes de violadores de direitos humanos

Um mapeamento realizado pela Coordenação de Direito à Memória e à Verdade (CDMV), pasta ligada à Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania da Prefeitura de São Paulo, identificou ao menos 17 logradouros ao menos paulistanos que homenageiam pessoas envolvidas direta ou indiretamente com os crimes de violação de direitos humanos praticados durante a ditadura militar brasileira (1964-1985).

Desde o centro até os quatro extremos da cidade, exemplos dessa conduta não faltam: o Minhocão foi batizado com o nome do general Artur Costa e Silva, o segundo presidente do período militar; o derradeiro, João Baptista Figueiredo, dá nome a uma via em Pirituba; o Viaduto 31 de Março, no Brás, remonta à data do golpe; na Vila Leopoldina, a rua Dr. Sergio Fleury relembra um dos torturadores mais conhecidos do período, assim como a Praça General Milton Tavares de Souza, localizada no Parque Novo Mundo.

Como se não bastasse, há ainda ruas e avenidas com nomes de diversos apoiadores das práticas autoritárias e ditatoriais, tais como Filinto Muller (Parque São Rafael), Carlos Lacerda (Campo Limpo) e Golbery do Couto e Silva (Grajaú).

Com a intenção de tirar do papel a Lei Municipal 15-717/2013, que permite a alteração de nomes de logradouros ligados a violadores de direitos humanos, a CDMV lançou o projeto Ruas de Memória, também impulsionado pela Comissão Nacional da Verdade (CNV) e pelo Plano Nacional de Direitos Humanos-3.

Segundo a coordenadora-adjunta da CDMV, Clara Ribeiro Castellano, é preciso desconstruir a ideia recorrente de que é o revanchismo que alimenta essas mudanças, que ainda gerariam gastos desnecessários para o poder público. “Acreditamos que é uma forma de reparação simbólica para as vítimas diretas desses crimes, o Estado reconhecendo que eles foram praticados e as violações ocorreram”, aponta. “É uma forma de reconstruir a memória histórica do país a partir da lógica da valorização dos direitos humanos.”

Para o professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU-USP) e presidente do Instituto Pólis, Renato Cymbalista, projetos como esse demonstram que finalmente o país está enfrentando a “herança maldita” da ditadura militar. “O nome das ruas tem um significado simbólico muito grande: significa um consenso social de que esta pessoa deve ser homenageada e sua memória perpetuada. Instituir como nomes de ruas  pessoas envolvidas na ditadura significa a legitimação de tais crimes”, observa.

Além de discutir o legado da ditadura, o Ruas de Memória pretende ajudar na construção de uma nova cultura cidadã. “A ditadura trouxe também o esvaziamento do espaço público e, com as perseguições políticas, reforçou a cultura do medo. A cidade ficou vazia. O projeto é uma forma de trazer a ocupação e ressignificação desses espaços”, aponta Clara.

Já Cymbalista recorre à história para lembrar que, em grande parte do Ocidente, as décadas de 1960 e 70 foram marcadas pelo esvaziamento do espaço público, suburbanização, motorização e construção de vias expressas. “No Brasil e na América Latina, esse processo ocorreu junto com as ditaduras, que não tinham nenhum apreço por grandes manifestações públicas.”

O professor sugere que o projeto não apague simplesmente o antigo nome do logradouro. “As ruas devem ser renomeadas, mas não devemos esquecer que elas já tiveram esses nomes por décadas”, observa. “É importante marcarmos que durante décadas a nossa sociedade não se incomodou em dar nomes de ruas, avenidas, aeroportos a personalidades envolvidas com a violação grave de direitos.”

Clara adianta que, se aprovada, a mudança de logradouros contará com placas explicativas sobre o ocorrido. Elas dependem de Projetos de Lei a serem aprovados pela Câmara de Vereadores de São Paulo. “Ao mesmo tempo em que precisamos superar etapas históricas, não devemos nos esquecer do passado”, conclui Cymbalista.

Os primeiros nomes que podem ser alterados são a avenida Golbery do Couto e Silva, no Grajaú, na zona sul, e o viaduto 31 de março, no Centro. 

Encontros com moradores resultaram na elaboração de um projeto de lei participativo que propõe a mudança da avenida Golbery para padre Giuseppe Pegoraro, religioso vinculado à história do bairro. A proposta já tramita na Câmara. 

General do Exército, Golbery foi um dos ideólogos do movimento que resultou nogolpe de 1964 que instalou o regime ditatorial marcado. De 1964 a 1967, chefiou o SNI (Serviço Nacional de Informação), órgão de inteligência que fundamentava perseguições políticas, torturas e execuções. 

O viaduto 31 de março lembra a data da deposição do presidente João Goulart e do início da ditadura que vigorou por 21 anos. O projeto de lei que prevê a mudança do nome do viaduto será enviado à Câmara em 13 de agosto. 

A prefeitura quer que ele passe a se chamar Thereza Zerbini, líder do Movimento Feminino pela Anistia, grupo de defesa de perseguidos pela ditadura. 

No próximo dia 13, a administração municipal também enviará à Câmara um projeto de lei para impedir novas homenagens a figuras relacionadas à violação de direitos humanos. A maioria dos nomes relacionados pela prefeitura foi citada no relatório da Comissão Nacional da Verdade, que investigou violações praticadas na ditadura. 

A iniciativa de mudá- los segue recomendações da comissão e do Programa Nacional de Direitos Humanos. Em todos os casos, a administração municipal pretende buscar o apoio dos moradores das vias e ouvir deles sugestões para os novos nomes. Antes da prefeitura, vereadores propuseram retirar homenagens feitas a figuras relacionadas à ditadura. 

Existem, por exemplo, as propostas de mudar o nome do elevado Costa Silva para Minhocão, como ele é popularmente conhecido, e a rua Sergio Fleury para Frei Tito.

Os nomes das vias que a prefeitura quer mudar

Elevado Costa e Silva
Marechal do Exército, atuou no movimento que instaurou a ditadura em 1964. Foi presidente entre 1967 e 1969. Em 13 de dezembro de 1968, promulgou o AI-5, ato institucional que agravou a repressão e a cassação dos direitos civis e políticos. O elevado fica na zona oeste.

Avenida Presidente Castelo Branco
Atuou no movimento que depôs o presidente João Goulart e foi o primeiro presidente da ditadura, entre 1964 e 1967. Castelo Branco é um dos nomes da marginal Tietê.

Avenida General Golbery Couto e Silva
General do Exército, foi um dos ideólogos do movimento que resultou no golpe de 1964. Daquele ano até 1967, chefiou o SNI(Serviço Nacional de Informação), órgão de inteligência que fundamentava perseguições políticas, torturas e execuções. A via fica no Grajaú, na zona sul.

Praça Augusto Rademaker Grunewald 
Almirante da Marinha, atuou no movimento que instaurou o regime ditatorial em 1964. Foi vice-presidente entre 1969 e 1974, período mais intenso de repressão, censura e cassação de direitos civis e políticos. A praça fica no Itaim Bibi, na zona oeste.

Praça General Milton Tavares de Souza
General do exército, dirigiu a operação Marajoara na fase final de extermínio da Guerrilha do Araguaia, quando houve o desaparecimento forçado e a ocultação dos cadáveres de guerrilheiros. A praça se situa na Vila Maria, na zona norte.

Avenida General Ênio Pimentel da Silveira
General do Exército, foi comandante da 1ª companhia de Polícia do Exército, na Vila Militar do Rio de Janeiro, de maio de 1968 a julho de 1971, período em que morreram na unidade, sob tortura, Severino Viana e Chael Charles Schreier. Serviu no Doi-Codi (Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna) do I Exército de abril de 1972 a junho de 1974. Teve participação comprovada em casos de tortura, execução e desaparecimento forçado. A avenida fica no Campo Limpo, na zona sul.

Rua Délio Jardim de Matos
Comandante da Aeronáutica, foi um dos articuladores do movimento que promoveu o golpe de 1964. Integrou o gabinete militar da Presidência da República entre 1964 e 1967 e foi ministro da Aeronáutica entre 1979 e 1984. A via fica no bairro Campo Grande, na zona sul.

Rua Sérgio Fleury 
Delegado, serviu no Dops (Departamento de Ordem Política e Social) e no Deic (Departamento de Investigações sobre o Crime). Teve participação comprovada em casos de tortura, execução e outras violações aos Direitos Humanos. Foi acusado pelo Ministério Público de liderar o Esquadrão da Morte, grupo de extermínio. A via fica na Vila Leopoldina, na zona oeste.

Rua Octávio Gonçalves Moreira Junior
Delegado de Polícia, serviu no Dops (Departamento de Ordem Política e Social de São Paulo) e no Doi-Codi (Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna). Teve participação em casos de tortura e ocultação de cadáveres. Foi morto em 1973 por opositores da ditadura. A rua fica no Rio Pequeno, bairro da zona oeste.

Rua Alcides Cintra Bueno Filho
Policial e delegado do Dops (Departamento de Ordem Política e Social de São Paulo) durante a ditadura, colaborou no encobrimento de casos de tortura, execução e ocultação de cadáveres. A via fica em Santana, na zona norte.

Rua Mário Santalucia
Médico-legista do IML (Instituto Médico Legal) do Estado de São Paulo, teve participação em caso de emissão de laudo necroscópico fraudulento. A via fica no Tucuruvi, na zona norte.

Rua Hely Lopes de Meirelles
Juiz e advogado, comandou a Secretaria da Segurança Pública do Estado de São Paulo durante a ditadura. Conduziu o delegado Sérgio Fleury ao comando do Dops, responsável por torturas e assassinatos de presos políticos. A rua fica no Tatuapé, na zona leste.

Rua Henning Boilesen 
Dinamarquês, dono da Ultragás, foi um dos principais empresários a financiar a Oban (Operação Bandeirantes), aparato de repressão a presos políticos durante a ditadura. Visitava o Doi-Codi (Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna) e foi homenageado por torturados que passaram a chamar um dos mais violentos instrumentos de tortura de “pianola Boilesen”. Em 1971, foi morto por opositores do regime. A via fica no Butantã, na zona oeste.

Rua Senador Filinto Müller 
Senador por quatro vezes entre 1947 e 1973, foi Chefe da Polícia Política durante o Estado Novo, instaurado pela ditadura de Getúlio Vargas, quando participou de operações para capturar líderes da oposição, como Luís Carlos Prestes e sua companheira, Olga Benário, extraditada e assassinada pelo regime nazista. Foi presidente da Arena, partido de sustentação da ditadura. A rua fica no Parque São Rafael, na zona leste.

Rua Olímpio Mourão Filho
General do Exército, atuou no movimento que instaurou o regime ditatorial em 1964. De 1967 a 1969, foi presidente do Superior Tribunal Militar, responsável pelo julgamento de presos políticos. É outra rua que fica no Rio Pequeno, zona oeste.

Viaduto 31 de março 
Data da deposição do presidente João Goulart e do início da ditadura que vigorou por 21 anos. O viaduto fica no Centro.

Rua 31 de março 
Data da deposição do presidente João Goulart e do início da ditadura que vigorou por 21 anos. A via fica no Morumbi, na zona oeste.

Danilo Mekari no Portal Aprendiz e Redação UOL. 

 

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