Por Valéria Midena.
Nasci canhota em uma família de destros sem registros de qualquer outro canhoto nas gerações mais próximas. Por sorte, minha lateralidade foi vista por meus pais com alguma surpresa, porém jamais como incômodo ou vergonha – era canhota assim como tinha olhos castanhos. Simples assim.
Talvez por isso tenha demorado a perceber, no início da vida escolar, os privilégios das crianças destras. Esconder com a própria mão o que tinha acabado de escrever, e borrar o que foi escrito, me parecia condição intrínseca à atividade de um estudante. Também naturais pareciam minha dificuldade em manipular uma tesoura e a incompetência no uso do abridor de latas – acreditava que todas as crianças passavam por isso.
Lembro com clareza da primeira vez em que pensei sobre minha condição de canhota. Era o início das aulas da 3ª série do ensino fundamental, e em minha sala havia uma aluna nova. Lúcia tinha aquela postura reservada dos alunos que enfrentam mudança de escola em meio a um ciclo. Seus olhos imensos, a pele muito branca, o rosto redondo e os cabelos negros e desalinhados faziam com que parecesse uma personagem de mangá. Notamos de imediato que tinha um tique: com frequência e em intervalos irregulares, sacudia a cabeça para o lado direito, em um movimento involuntário e brusco. A fofoca logo correu a boca das crianças: Lúcia teria tido o braço esquerdo amarrado pelos pais durante os primeiros anos escolares e, por causa das consequentes dificuldades de aprendizagem e socialização, havia sido transferida de colégio. Continuava canhota.
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Como ela, milhares de crianças foram, e são ainda, vítimas de processos de reeducação que adotam técnicas violentas de condicionamento, capazes de provocar transtornos de aprendizagem e fala – a gagueira de George VI, pai da rainha Elizabeth II, teria decorrido dos métodos abusivos que pretendiam fazê-lo destro. Em países como China, Coreia do Sul, Tailândia e Indonésia, tais práticas são frequentes e têm o apoio de pais temerosos de que o estigma social dos canhotos prejudique seus filhos no mercado de trabalho. (Um estudo recente da Universidade Chang Gung, em Taiwan, revelou que 59,3% das crianças canhotas do país foram forçadas a virar destras.)
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canhoto (ô). [De canho + oto1] . Adj. 1. Que é mais hábil com a mão esquerda que com a direita; esquerdo; canho; canhoteiro. [Opõe-se a manidestro] Adj. 2. Inábil; desajeitado; desastrado.
canho1. S. m. Pop. Lucro desonesto; ilícito.
canho2. [De or. controvertida] Adj.V. canhoto (1)
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Em grande parte dos idiomas, a palavra utilizada para designar um canhoto tem conotação negativa.
No inglês, left deriva de lyft, cujo significado arcaico é fraco ou impotente; em francês, gauche, além de canhoto, pode ser também o incorreto ou o atrapalhado, e a designação italiana sinistro vem do latim sinistrum, que remete a funesto, infeliz. Em húngaro, bal é também mau, e em turco, sol pode indicar descolorido, doente e ainda morte.
No Dicionário Analógico da Língua Portuguesa, o adjetivo canhoto aparece associado a outros como inábil, indigno, incapaz, canhestro, bisonho, imperito, inerte, desajeitado, desprendado, insuficiente, desajeitado, desastrado, estabanado, de vista curta, inepto, improficiente, inexperto, inexperiente, negligente e relaxado. E pelo Dicionário de Locuções e Expressões da Língua Portuguesa, com o pé esquerdo significa de maneira infeliz.
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Canhotos têm o cotidiano permeado por inúmeras situações de constrangimento, desconforto ou frustração invisíveis para a maioria das pessoas. A necessidade de ser rápida e precisa na inserção do bilhete na catraca do metrô, por exemplo, até hoje me causa tensão, e prefiro me contorcer em uma carteira universitária para destros a solicitar uma para canhotos – pedido sempre recebido com desprezo. Por falta de modelos e de preparo de professores e instrutores, toco violão, manuseio certas ferramentas e faço tricô como uma destra inepta; crochê, nunca consegui aprender, e durante a formação em piano, por anos ouvi que minha mão esquerda (a que toca a harmonia, na música clássica) era pesada demais. Hesito antes de corresponder a um aperto de mão, não uso cadernos com espiral e, em certas refeições, tenho que escolher entre estraçalhar um peixe ou manusear sem jeito, com a mão direita, a faca específica.
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Um estudo da Universidade de Oxford, publicado em 2019, identificou pela primeira vez características genéticas associadas a canhotos. Essas variações resultariam em diferenças na estrutura de seus cérebros, conferindo a eles maior habilidade para tarefas verbais. Outro trabalho concomitante, conduzido pela Universidade de Liverpool, demonstrou que corpo caloso – conjunto de células nervosas que conecta os dois hemisférios cerebrais – costuma ser maior nos canhotos, indicando uma conectividade melhor entre as duas metades do cérebro e, por consequência, uma forma superior de processamento de informações. Tais peculiaridades podem explicar o fato de canhotos representarem, entre artistas, arquitetos e jogadores de xadrez, bem mais do que os dez por cento que representam na população em geral.
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Reflito sobre essas descobertas recentes e penso em Leonardo da Vinci, Isaac Newton, Albert Einstein e Marie Curie; em Michelangelo, Rubens, Van Gogh, Picasso, Klee, Mozart, Beethoven; Cole Porter, Hendrix, Dylan, Bowie, Paul e Ringo; penso também em Senna, Marta, Maradona, Pelé; em Judy Garland, Marilyn, Chaplin, Obama, Ruth Ginsburg, Mark Twain, Kafka, Tolstói, Machado. Concluo: sou canhota, mas estou em ótima companhia. 😉
Em tempo: Drummond, vejam só, era destro.