Vaidade

Por Valéria Midena.

Atendo o celular e ela vai logo dizendo:

– Peguei a caixa errada.

– Como assim?

– Trouxe a da doação, não a minha.

– Ai, Nanda, jura?

– Sorte que percebi no caminho. Abri pra dar uma folheada no Ai de ti, Copacabana, e me deparei com A Sutil Arte de Ligar o Foda-se – aliás, como assim???

– Amigo-secreto da agência.

– Ah, bom. O Uber já deu meia-volta, chego em… quanto tempo, moço? Oito minutos. Você desce até a portaria com minha caixa, please?

Meryl Streep é ‘Miranda Priestly’ em ‘O Diabo Veste Prada’ de David Frankel, 2006. Imagem: Fox Pictures / Divulgação.

Me sinto o carteiro do Drummond – aquele, que adorava ler e escrever mas detestava carregar livros. Uma caixa cheia? (O pior é que sempre acontece. Vivo comprando livros, e como a estante não cresce, de tempos em tempos sou obrigada a me desfazer de vários. Seleciono, organizo em lotes, chamo um ou outro amigo que possa ter interesse – dessa vez foi a Nanda –, e depois levo os preteridos a uma escola pública, em doação.)

Então tá. Domingo, onze da noite, depois de duas garrafas de vinho em horas de papo com a amiga. Vejo sobre o sofá o moletom oversized de minha filha – FFLCH USP. Visto o casaco sobre o short mínimo e a regata caseira, calço a Birkenstock deformada pelos anos, ponho uma máscara no rosto, arrasto a caixa de livros até o hall social e chamo o elevador sem prestar atenção. Aguardo checando o celular, e quando, pelo som, percebo que chegou, abro a porta num gesto automático. Travo. Dentro, impecável como sempre, está o homem mais gato do prédio, vizinho do décimo quinto andar: terno cinza bem cortado, gravata de seda rosa, sapatos Ferragamo, perfume sutil (quem se veste desse jeito em um domingo à noite?). Por meio de seus olhos, vejo que sorri:

– Oi, Valéria, boa noite! Quer ajuda?

Demoro segundos até concatenar alguma fala:

– Não, quer dizer, oi Fred! Não precisa, imagina.

– Parece pesada…

– Não, não, tá tranquilo.

Logo me agacho e suspendo a caixa com os braços, escorando-a em meu quadril. Estico as pernas e, já ereta, solto a porta do elevador, que segurava com um dos pés. Avanço um passo, e quase infarto com a imagem refletida no espelho ao fundo do elevador – não bastasse meu look esculachado, na caixa de papelão vejo escrito, em letras cor-de-rosa: VAGISIL – SABONETE ÍNTIMO.

A porta se fecha atrás de mim, o elevador retoma a descida e já nem lembro mais do carteiro – agora sou O Homem Nu do Sabino. Em pânico, sem saber o que fazer, me coloco de costas para o espelho, à direita do Fred, a cabeça surtando – que raios de caixa é essa? Como veio parar em casa? Vou apoiar no chão de novo. Não, claro que ele já leu, que vergonha! Faço o quê, uma brincadeira?

Na dúvida, fico quieta. O vizinho gato também não fala nada, mas SEI que por baixo da máscara continua sorrindo. Tentando aparentar naturalidade, fixo meus olhos no visor que indica os andares, e maldigo em silêncio a lentidão dos elevadores dos prédios antigos. Oito…  Sete…  Sete. O visor para no sete.

A essa altura, começo a transpirar, meu pescoço se contrai, tenho a sensação de taquicardia. Em meio a vozes, a porta se abre e dou de cara com a vizinha FAMOSA CONSULTORA DE MODA, que se despede da amiga FAMOSA DESIGNER DE MODA. Nem vou comentar as roupas, os sapatos, bijoux e afins.

Protegida pela máscara e pelos inseparáveis óculos escuros, a vizinha arqueia uma das sobrancelhas e pronuncia um discreto ‘olá’. Sussurro um ‘boa noite’, enquanto Fred segue esbanjando simpatia: 

– Tudo bem, Helena?

– Tudo, e você, querido?

Duas ou três palavras, a vizinha se despede. Sua amiga entra no elevador, faz um pequeno aceno com a cabeça – ao qual eu e Fred retribuímos –, e então se vira para a porta já fechada, dando as costas para nós.

Volto ao visor, o coração agora na garganta. Seis… Cinco… Quatro… Três… Dois… Um… T.

O elevador para, e enquanto a tal designer empurra a porta, dizendo ‘até logo’ sem olhar para trás, verifico que não há ninguém no hall do prédio. Suspiro. Fred pergunta se vou até o subsolo e logo estende o braço, mantendo a porta aberta, quando respondo que fico ali mesmo. Agradeço e me despeço. Ele, claro, sorri.

Com os braços doloridos e transpirando mais que nunca, atravesso o jardim até o portão de entrada enquanto Nanda desce do Uber, a outra caixa nos braços. Mal me vê e ela dispara:

– Amiga, me diverti de balde! Tem até Danusa Leão aqui dentro!

– Esse fui eu mesma. E quer saber? Vou pegar de volta – tivesse lido com atenção, hoje não passava carão. Chapeau pra ela.

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ValériaMidena_©AndréPassos
Valéria Midena
Valéria Midena graduada em Arquitetura e Urbanismo pela FAU-USP com especialização em Branding pela FGV-SP é expert em projetos de Marca. É também escritora, autora e editora do site SobreTodasAsCoisas.

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