Era advogada, e isso de pegar o jeito de falar dos clientes a atormentava. Agora, imagine, numa cidade como São Paulo, que tem uma população enorme de imigrantes de todo tipo. Suas defesas no tribunal eram risíveis, não por culpa dela, mas de seu hábito de assimilar o ritmo da língua no ar.
Noite dessas, sonhou que estava na mostra do pernambucano Francisco Brennand, que traz inspirações do falo, na Pinacoteca. Rodeou, rodeou, achando tudo lindo, até perceber que o artista estava lá, junto das peças dando uma entrevista. Catálogo nas mãos, esperou que ele terminasse para pedir um autógrafo. Muito elegante e solícito – até no sonho – ele estava escrevendo a dedicatória quando ela soltou um “pernambucanês”. Perguntou-lhe sobre sua estada na França, com Léger, e outros papas da arte. Ele um autêntico sedutor, soltou algo como c’est formidable votre ville, Madame. Ela desembestou a conversar em francês com o charmoso escultor, com aquela pernambucana que falava francês e sem sotaque. Uma mulher especial ,une personne três agréable. Uma madame especial, charmosa, de cabelos longos e negros, contrastando com a alvura do rosto jovial.
Foram para um café, numa mesa embaixo das árvores do Jardim da Luz. Cada vez mais encantada com o artista, ela soltou a franga com expressões inglesas, francesas, italianas… Uma poliglota nata, expunha seu vocabulário cosmopolita, com naturalidade, seu jeito de se comunicar. Tudo, muito natural, brotava com espontaneidade. Ficou surpreso quando, afinal, ela assumiu que era natural de São Paulo e apaixonada por idiomas, por aqueles que os dominavam e pelos sotaques. Ele encerrou a conversa abestalhado com a tal data venia de saia, que lhe proporcionou momentos simpáticos naquela tarde antes do vernissage.
Convidou-a para visitar seu museu e atelier quando fosse a Pernambuco e, contrariando a todos que a consideravam pernóstica, com sua “paulistaneidade” convicta, disse-lhe: “Foi o que eu imaginava. Alguém neste melting pot que é São Paulo tem que passar por essas e por outras. Aqui em alguns instantes, ao contrário de minha terra no Nordeste, já vi japonês de mãos dadas com mulata, judeu com coreana, italiano que come o tal virado à paulista no PF, e português dono de pastelaria. Não se apoquente não, Madame data venia. Você está dentro do contexto do planeta SP, que faz desta cidade algo que contagia e surpreende… Seus sotaques, minha senhora, fazem de você uma ventríloqua do mundo. É bem assim que tem que ser para habitar sua cidade”.
Nisto tocou o despertador. Um sonho tão próximo do real… Merde! Levantou-se e pensou, hoje vou à Pinacoteca, só para ver, sonhar, falar e falar…com Brennand.
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Marina Bueno Cardoso, jornalista, trabalhou na imprensa em São Paulo e na área de Comunicação Corporativa de empresas. É autora do livro “Petit-Fours na Cracolândia”, Editora Patuá. Publica crônicas quinzenalmente no São Paulo São que são replicadas no site literário www.musarara.com.br