Vila Maria Zélia, nostalgia e descaso na memória da cidade

“Na nossa cultura, o patrimônio não é valorizado”, diz Dóris Lenate, da Associação Cultural Vila Maria Zélia. Moradora desde 1985, ela é testemunha das idas e vindas dos projetos de restauração dos prédios públicos da vila, alguns deles em estado deplorável.

Construída pelo médico carioca e empresário Jorge Street, dono da Companhia Nacional de Tecidos de Juta, que produzia sacarias para produtos agrícolas, a vila, inaugurada em 1917, era constituída de cerca de 200 casas, para parte dos 2.100 trabalhadores da empresa e suas famílias, um bloco de dormitórios individuais para os solteiros, uma escola para meninos e outra para meninas, creche, armazém, igreja e um salão para o clube. No local, ainda havia açougue, campo de futebol, coreto, praça, boticário (farmácia) e fábrica de sapatos.
Residência ampliada e com fachada restaurada. Foto: Marcia Minillo.
Detalhe da arquitetura original. Foto: Marcia Minillo.
O pai de Jorge Street era austríaco e a mãe francesa e, como era costume entre a elite da época, o casal mandou o filho estudar fora do país. De volta da Alemanha, onde passou a adolescência, Street cursou medicina no Rio de Janeiro, mas, ao herdar do pai ações de uma tecelagem, iniciou sua carreira de empresário. Na Europa, ele conheceu outras vilas operárias e acredita-se que tenha se encantado pela Vila Saltaire, na Inglaterra, considerada Patrimônio da Humanidade desde 2001 por manter inalteradas suas características do final do século XIX.  Para projetar a Vila Maria Zélia, o empresário contratou o arquiteto francês Paul Pedaurrieux. Batizada com o nome da filha de Jorge Street, que faleceu de tuberculose aos 16 anos, a vila possuía casas de quatro tamanhos, variando de 75 a 110 m2, e de seis tipos diferentes. Todas contavam com água e esgoto encanados. Um luxo para a época, em que a maioria dos trabalhadores vivia em cortiços.
 
Ruína da escola de meninas.Mas a vila e a fábrica, construída ao lado, ficaram apenas mais sete anos sob o comando de Jorge Street. Com dificuldades financeiras, ele vendeu o complexo todo, em 1924, para Francisco Scarpa, que por sua vez o repassou, em 1929, à família Guinle. Nesse período, a vila passou a se chamar Vila Scarpa e depois, sob o comando dos Guinle, voltou ao nome original. Em 1931, a fábrica e a vila foram confiscadas pelo Instituto de Aposentadoria de Pensão dos Industriários (IAPI), atual Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).

No governo de Getúlio Vargas, durante o Estado Novo, a fábrica abrigou um presídio político. Ele funcionou de novembro de 1935 a novembro de 1937, chegou a ter 700 presos, entre eles figuras ilustres, como os historiadores Caio Prado Jr. e Paulo Emílio Sales Gomes, que também era crítico de cinema. A fábrica ficou fechada até 1939, ano em foi inaugurada a Goodyear, nova dono do imóvel, que está no local até hoje. Além da fábrica, a empresa comprou os prédios da creche, do jardim da infância e 18 casas, quase tudo demolido para a ampliação da planta.

O restante das casas continuou com os antigos moradores, que passaram a pagar aluguel ao IAPI. Isso durou até 1968, quando, por meio do Banco Nacional da Habitação (BNH), conseguiram financiamento para comprar seus imóveis. Até essa época, nenhuma melhoria, de uma simples pintura a reformas, podia ser feita sem autorização do administrador ou do síndico, mas, a partir daí, já cinquentenárias, as casas começaram a perder suas características originais. Os prédios públicos, fechados desde a década de 1960, estão em situação precária, alguns em ruínas, mas o que restou deles é da época da construção. Entre as casas, apenas três conservam o estado original. “O INSS é o dono dos prédios públicos, mas não cuida nem deixa ninguém fazer nada”, diz Dóris. O único que passou por reformas foi o da igreja, amealhado num leilão pela Cúria Metropolitana há cinco anos. 

Conjunto arquitetônico aguarda por restauração

Logo na entrada da vila estão a Igreja, que sempre se manteve em atividade, e dois prédios laterais a ela. No prédio do antigo armazém, do lado esquerdo da igreja, duas famílias ocupam apartamentos no andar superior. O térreo, desde 2004, abriga o Grupo XIX de Teatro, que apresenta suas peças no local e tem contribuído para chamar atenção para a importância histórica e arquitetônica da vila. Dividindo espaço com o grupo de teatro, a Associação Cultural Vila Maria Zélia também promove ações com esse objetivo e para angariar fundos para restaurações.

O outro prédio, que fica à direita da entrada da vila, mantém uma faixa carcomida colocada pela prefeitura sobre uma obra iniciada em 2008 para a colocação de um telhado provisório. E mesmo esse não foi concluído. No térreo desse prédio, havia um salão de festas e uma fábrica de calçados e chapéus. Há alguns anos, o Ministério Público moveu uma ação cobrando do INSS e do poder público providências quanto à conservação da vila, mas até agora nada foi feito.

Antigo armazém guarda características da época. Foto: Marcia Minillo.

No ano passado, o Departamento do Patrimônio Histórico (DPH) da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo deu início a um projeto de recaracterização da Vila Maria Zélia, desenvolvido pela geógrafa Simone Scifone, com apoio do Conselho de Defesa do Patrimônio  Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (CONDEPHAAT). O objetivo é estimular a proteção compartilhada do patrimônio cultural tombado com a sociedade. A partir do resultado de oficinas feitas com os moradores em 2015, foram realizadas duas reuniões em 2016 e uma das propostas em estudo é a criação de parcerias com faculdades de arquitetura que anualmente realizam trabalhos sobre a Vila Maria Zélia, mas nada ainda foi definido. Ou seja, ao contrário da vila operária inglesa, que provavelmente inspirou Jorge Street e foi declarada patrimônio da humanidade em 2001, a Vila Maria Zélia corre sério risco de sucumbir aos efeitos do tempo e do descaso.

O que restou da escola de meninas. Foto: Marcia Minillo.

Interior do antigo armazém. Foto: Marcia Minillo.

Interior do prédio onde funcionou a fábrica de sapatos. Foto: Marcia Minillo.Porém, apesar do abandono por parte do poder público, o lugar atrai muitos visitantes e está inserido em alguns roteiros culturais e patrimoniais da cidade. Recebe pessoas curiosas em conhecer a simetria e o alinhamento de seu conjunto arquitetônico. É ainda cenário para clipes musicais, produções fotográficas, cinematográficas, teatrais e publicitárias.

Quem chega à vila encontra uma cancela com segurança, mas o acesso é liberado sem necessidade de identificação. Ao lado da entrada, há  uma bonita praça, com bancos de madeira e árvores.  O local também abriga várias festas ao longo do ano – a junina é uma das mais atraentes da região.  A visita à Vila Maria Zélia é um agradável passeio – apesar de estar ao lado de uma grande indústria, suas ruas são tranquilas e abrigam casas onde residem descendentes das primeiras gerações de moradores da vila.

Vale a pena conhecer: Vila Maria Zélia – Rua dos Prazeres esquina com Rua Cachoeira – Belenzinho.

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Por Marina Izidoro. Parceria de conteúdo do São Paulo São com o Sampa Inesgotável.

 
 

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