Se a ideia é criar uma cidade para pessoas, em que as pessoas caminhem, façam percursos a pé, se desloquem de forma mais saudável e sustentável, pelo menos em determinados territórios, por que fazer o cidadão caminhar até a esquina para atravessar a rua e, eventualmente, ter que caminhar de volta se seu interesse está no meio da quadra.
Em cidades pequenas as pessoas transitam nas ruas de forma mais livre, mas em cidades maiores, e em vias onde o fluxo de carros é maior, os números não deixam dúvidas: atravessar a rua fora do lugar pode ser arriscado e até fatal. A Alemanha lançou o conceito da “Zona 30” ainda na década de 1980. Sinceramente, a primeira vez que li sobre isso pensei: impossível, vai ser uma confusão. Ainda que, na cidade onde vivo, as pessoas atravessam a rua onde bem entendem, principalmente na área central onde o fluxo de pedestres é muito intenso.
Mas, com o passar dos anos e o entendimento do que é uma “Zona 30”, vemos que é uma solução bastante interessante para ser aplicada em locais específicos da cidade. Obviamente que não se trata de um conceito para ser usado à revelia, sem um estudo de planejamento, porém sua aplicação em diversas cidades do mundo, e inclusive do Brasil (Rio de Janeiro, São Paulo, Curitiba, Recife) vem comprovando a melhora nos aspectos de segurança (Recife reduziu 30% dos acidentes graves na região e Londres em torno de 40%).
Em um atropelamento a 60 km/h, velocidade permitida em nossas cidades, ninguém sai ileso e 90% das vítimas morrem. Se a pessoa for atropelada a 30Km/h, somente 5% morrem e 35% saem ilesas. Da mesma forma, para parar um carro a 60Km/h é preciso 18m e a 30Km/h apenas 5m, ou seja, o condutor consegue reagir antes de causar um acidente, além de visualizar o entorno melhor quando está mais devagar.
Assim, a “Zona 30” vem como uma solução para melhorar a segurança mas também a qualidade de vida e a ambiência urbana. O conceito deve ser aplicado em vias locais, onde a pista pode ser compartilhada entre pedestres, bicicletas, patinetes, motos e veículos. Os veículos devem respeitar a velocidade máxima de 30km/h, priorizando quem anda a pé, de bicicleta ou quem tem mobilidade reduzida, principalmente os idosos.
A implantação das zonas 30 divide a opinião de especialistas, pois alguns entendem que ela faz o trânsito parar. Mas em defesa do conceito, quero dizer que este zoneamento é justamente para ser aplicado em locais da cidade onde não queremos a presença massiva dos carros, sendo que o fluxo de veículos deve permanecer devido às necessidades dos moradores e comércios.
Por isso, implantar a “Zona 30” é um tema de planejamento urbano. Definir as áreas da cidade onde a prioridade será do pedestre é fundamental, bem como fazer os estudos de fluxo e contagem de pedestres, para definir as vias em que o trânsito de veículos irá escoar e onde ele irá apenas transitar em baixa velocidade. Para tanto é importante entender a cidade, sua dinâmica e os pólos geradores de tráfego.
Na Alemanha, criadora do conceito, as zonas 30 são implantadas principalmente em algumas situações: vias locais de bairros, predominantemente residenciais; centros e áreas históricas com fluxo intenso de pedestres; entorno de escolas. Como o objetivo é criar zonas mais seguras através da redução da velocidade e valorização das pessoas e não dos carros, são necessárias ações de estruturação – desenho urbano – e ações de educação e engajamento.
Não basta colocar placas e esperar que os motoristas respeitem. O ambiente da “Zona 30” deve ser mais humanizado, a via deve ser mais estreita e se possível o material do leito não deve ser o tradicional asfalto, mas sim um bloco intertravado ou bloco de basalto. Em relação ao desenho urbano são inúmeras as soluções.
Na Europa é comum que a pista de rolamento fique no mesmo nível da calçada, com largura reduzida, permitindo a travessia dos pedestres de forma rápida e segura. Em Berlim cheguei a ver ruas de “Zona 30” em áreas residenciais com mão dupla, onde a largura permitia passar apenas um carro e meio, quando dois veículos se encontravam um dava lugar para o outro. Mas aí é uma transformação cultural que ainda demora para nós.
Certamente que as regiões de “Zona 30”, quando bem estruturadas e pensadas, trarão toda sorte de resultados positivos. Elas são muitas vezes soluções interessantes para cidades que têm receio em implantar um calçadão para pedestres, por exemplo, com medo de que retirar os carros vai levar às lojas à falência.Dentre os benefícios está justamente o aumento da qualidade de vida e humanização da cidade, a possibilidade de proporcionar mais encontros e melhorar as relações de vizinhança, além do que, um ambiente qualificado atrai mais pessoas para caminhadas e atividades físicas ao ar livre. Como a “Zona 30” devolve a rua às pessoas, cria-se um ambiente mais seguro para as crianças brincarem e circularem.
Em relação às áreas comerciais, a redução da velocidade dos carros traz resultados positivos para o comércio. Ao transitar devagar o motorista estabelece uma relação mais direta com a vitrine, além disso, ao caminhar as pessoas tendem a comprar mais, isso mesmo, todas as pesquisas mundiais indicam que as pessoas consomem mais quando estão caminhando.
O ato de caminhar melhora o humor, leva a pessoa a “flanar”, a olhar vitrines, a sentir odores e cheiros da cidade e naturalmente a se relacionar de forma mais íntima com o lugar. Também, a “Zona 30” pode passar a ser uma solução muito interessante durante e pós pandemia, pois permite a criação de espaços mais amplos para os pedestres, garantindo a possibilidade do afastamento social.
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Ana Paula Wickert é arquiteta e urbanista, mestre em Arquitetura e MBA em Marketing pela FGV.