A história da primeira e única ‘mina’ a comandar um time de futebol profissional em SP

 
Aos 20 minutos do primeiro tempo, o time local abre 3 x 0 no placar e não dá chances aos visitantes. É um massacre. Antes da peleja começar, o técnico do Atlético Mogi, Aguinaldo Moreira, goleiro do Santos na época de Pelé, havia sido bem claro: “Não aceito perder para uma mulher”. A mulher em questão era Nilmara Alves, treinadora do Manthiqueira, a equipe visitante que levava um chocolate no estádio Nogueirão, em Mogi das Cruzes. Assim que o árbitro apita o intervalo, ela reúne o grupo no vestiário e, sem elevar o tom de voz, diz aos jogadores para seguirem fiéis à proposta de jogo e que, apesar do resultado, eles estavam bem. Os gols sofridos, falou, foram acidentes de percurso.
 
“Fui pro vestiário pensando que a Nilmara daria uma bronca geral, mas a única coisa que ela fez foi trocar o lateral­esquerdo por um atacante”, conta Geraldo Márgelo de Oliveira, dono do Manthiqueira, que, no fim, venceu o Atlético Mogi por 4 x 3. Uma virada épica. Aguinaldo Moreira, o técnico adversário que não aceitava perder para mulher, saiu de campo esbravejando e teve de engolir a seco o “nó tático”, no linguajar boleiro. Era só o primeiro mês de Nilmara à frente da equipe de Guaratinguetá. Ela havia se tornado a primeira e única mulher a dirigir um clube masculino de futebol profissional em São Paulo. Antes, somente Cláudia Malheiro, vice­campeã acriana com o Andirá, em 2007, havia alcançado feito semelhante no Brasil.
 
Hoje, aos 35 anos, Nilmara está em sua quinta temporada consecutiva no comando do Manthiqueira, que disputa a quarta divisão do Campeonato Paulista. Há quatro anos, naquela tarde de 19 de maio de 2012, ela provava para um treinador machista que não há nada extraordinário no fato de uma mulher superarum homem no futebol. O preconceito, porém, não deixou de acompanhar sua trajetória. “Ouço muita coisa à beira do gramado”, afirma a treinadora. “Já me mandaram voltar pro fogão. Dizem que lugar de mulher é na cozinha, não no campo de futebol. Outros gritam que eu deveria estar lavando roupa. Nenhuma mulher gosta de ouvir insulto machista. Mas, desde o dia em que aceitei o convite pra ser técnica, me preparei psicologicamente para aguentar ofensas e todo tipo de pressão.”
 

No ano passado, o Manthiqueira terminou em sexto lugar e por pouco não conseguiu um inédito acesso à terceira divisão. O time de Nilmara joga bonito. Troca passes do campo de defesa ao ataque, evita chutões, faz pouquíssimas faltas e jamais arma retranca, mesmo quando atua fora de casa. Estrategista, ela se inspira no lendário Carrossel Holandês, o timaço da Holanda nos anos 70. A premissa dela é a do “futebol total” eternizada no Barcelona por Pep Guardiola e Johan Cruyff, falecido em março deste ano.

Mesmo num time pequeno e discriminada no meio, Nilmara já despertou a admiração de torcedores do interior de São Paulo. “Teve uma vez que voltamos a Mogi das Cruzes para enfrentar o União. Vencemos e jogamos tão bem que a torcida deles começou a gritar: ‘Ão, ão, ão, Nilmara no União!'”, relembra a técnica. Pela ousadia, seu time ficou conhecido como “Carrossel do Vale”, em alusão a Guaratinguetá, que fica no Vale do Paraíba.

Embora sua história não seja tão conhecida entre torcedores de times grandes, Nilmara faz escola no futebol. É um caso atípico, assim como o Manthiqueira, clube que, definitivamente, está longe de ser convencional.

Time laico, ficha limpa e pró-diversidade. Coisa de louco?

Quem chega ao centro de treinamento, na zona rural de Guaratinguetá, com vista panorâmica para a Serra da Mantiqueira, logo dá de cara com uma enorme cartilha na entrada da sede. Nela, estão listados os mandamentos que todos os jogadores e funcionários devem seguir. “Malandragem proibida”, diz a primeira regra. Um recorte de jornal com a foto do atacante alemão Miroslav Klose, que em 2012 fez um gol de mão e logo avisou ao árbitro do toque irregular, é mostrado a cada jogador antes de fechar contrato. O Manthiqueira não admite que seus atletas tentem simular faltas para enganar a arbitragem. Se a bola toca na mão de alguém, o infrator deve se acusar ao juiz sem pestanejar. Jogadas desleais? Nem pensar. Cortes de cabelo extravagantes, à la Neymar, ou comemoração de gol com dancinhas? Melhor evitar. Em vez da oração antes de entrar em campo, dois minutos de silêncio para respeitar todas as religiões. Cada um que reze por sua crença meditando, nada de gritaria.

“Aqui a gente quer mostrar que é possível vencer com ética, de forma honesta”

Geraldo Márgelo de Oliveira, 55 anos, presidente e fundador do Manthiqueira, é uma espécie de “Mujica do futebol” em Guaratinguetá. Não circula de carrão pela cidade e vive em uma casa simples, sem ostentação. Investiu praticamente todo seu dinheiro na criação do clube. Ou melhor, em sua causa. “Mais que um time de futebol, o Manthiquera é uma filosofia de vida”, explica. “Vivemos numa sociedade em que as pessoas querem tirar vantagem em tudo, onde há pouca solidariedade e muito egoísmo. Aqui, a gente quer mostrar que é possível vencer com ética, de forma honesta.” Seu estilo incomum para um cartola gera espanto em muitos torcedores. “Já fui chamado de louco várias vezes. E até acho que sou meio louco mesmo. Mas acredito no projeto. É meu propósito de vida. Cedo ou tarde, vai dar certo.”

Geraldo, o Dado, fundador e presidente­filósofo do Manthiqueira. Foto: Felipe Larozza / VICE.

Depois de 30 anos servindo à Aeronáutica, Dado, como é conhecido na cidade, resolveu estudar filosofia e fundar um clube que seguisse à risca os princípios éticos de Immanuel Kant. O Manthiqueira nasceu em 2005, mas somente a venda inesperada de um terreno em Goiás, cinco anos mais tarde, possibilitou a realização de seu sonho. Com a grana, ele pagou os 600.000 reais necessários para filiar o clube à Federação Paulista de Futebol e comprou a área de 35.000 m² para a construção do centro de treinamento. No escudo do time, resolveu homenagear Rinus Michels, o revolucionário treinador da Holanda na Copa de 1974, que é o grande espelho do Manthiqueira – o que explica o uniforme laranja.

Em 2006, Dado publicou “Jogo Sério”, seu terceiro romance. Em um trecho do livro, ele descreve a Laranja Mecânica que o encantou na infância: “Eles dominavam os fundamentos do futebol, erravam poucos passes, conheciam bem todas as posições e desempenhavam qualquer função tática”. Já era um esboço do modelo que ele queria aplicar a seu time, que jogasse de maneira tão vistosa quanto o carrossel de Rinus Michels. E é justamente aí que Nilmara entra na história.

Quando a conheceu, ela treinava os garotos de uma escolinha filial do São Caetano em Guaratinguetá, o embrião do Manthiqueira. No primeiro campeonato oficial disputado pelo clube, em 2011, Nilmara trabalhou como preparadora física. Mas desde a época da escolinha Dado desconfiava que ela poderia ser a pessoa ideal para liderar seu projeto. “Ela tem um poder de observação e percepção de jogo fantástico. Consegue prever o que vai acontecer nas partidas e toma decisões corretas. O feeling dela não costuma falhar.” Na temporada seguinte, ela foi promovida a treinadora do time principal.

O modesto vestiário dos atletas. Foto: Felipe Larozza / VICE. 

O estilo de Nilmara casou perfeitamente com a proposta do Manthiqueira, já que outro mandamento de sua cartilha prega que o treinador não deve ficar berrando nem gesticulando à beira do gramado. “Não gosto de técnico que canta a jogada o tempo todo. Vejo o jogador de futebol como um artista. E o artista tem de ser livre para criar”, diz Dado, prontamente endossado pela treinadora. “Exijo muito nos treinos, mas, durante as partidas, deixo os jogadores fazerem suas próprias escolhas.” Para ela, mais vale o jogo coletivo que a individualidade do craque. “Gosto do futebol bem jogado, com toque de bola e troca de posições. Prefiro que saia o gol de uma jogada trabalhada ao cara que abaixa a cabeça e sai driblando todo mundo.”

Por mais mulheres na linha de frente

Para qualquer treinador em início de carreira, a oportunidade de comandar um time profissional de futebol seria motivo de comemoração entre amigos e familiares. Menos para uma mulher. Menos para Nilmara. Antes do primeiro jogo do Manthiqueira nesta temporada, ela levou uma bronca da mãe ao tirar a reluzente camisa laranja do armário para trabalhar: “Ah, minha filha, até hoje você não largou esse tal de Manthiqueira?” Sua profissão não é lá muito bem vista na família. “Nunca me proibiram, mas também nunca gostaram. Meu pai dizia que futebol não dá camisa.”

Nilmara começou a jogar bola quando criança em Aparecida, município vizinho de Guaratinguetá. Se faltava um jogador, ela completava o time dos primos. Aos 10 anos, foi a aluna número 1 da primeira escolinha que surgiu na cidade, antes mesmo de qualquer menino. Zagueira, chegou a disputar o Campeonato Paulista feminino pelos times de Taubaté e Lorena. A segurança na defesa rendeu um convite para integrar as Sereias da Vila, a equipe feminina do Santos. Ela recusou. “No Brasil, o futebol feminino tem muita incerteza, não é valorizado. Optei por terminar a faculdade.”

A treinadora em momento de folga pós­ treino. Foto: Felipe Larozza/ VICE. 

Formada em educação física, Nilmara deu seu primeiro treino na escolinha do São Caetano e acompanhou toda a concepção do projeto Manthiqueira até receber a proposta de Dado de Oliveira para se tornar treinadora do time profissional. O presidente ouviu de torcedores e empresários da cidade que a ideia de colocar uma mulher para treinar homens seria um estrondoso fracasso. Mesmo após derrotas acachapantes, Dado manteve Nilmara no cargo. Ela sabe que dificilmente teria oportunidade e, sobretudo, tempo para desenvolver o trabalho em outro clube que não fosse o Manthiqueira. “Nem homens que treinam na primeira divisão têm a estabilidade que eu tenho aqui. Esse voto de confiança ajuda a explicar a evolução do time nos últimos anos.”

“A Nilmara não é treinadora do meu time por ser mulher. Ela tá aqui porque é capaz.”

No dia a dia, Nilmara lida naturalmente com os 30 marmanjos do elenco. Eles trocam de uniforme no vestiário e só então ela entra para dar instruções. Já houve ocasião em que topou com homem pelado ou de toalhas. Para ela, nada de constrangimento. Trata os jogadores como profissionais. “Ela enxerga o lado humano dos atletas”, diz Robson, 23 anos, capitão do time. “Ao contrário de muitos treinadores com quem eu trabalhei, a Nilmara não é agressiva nem mal educada. Ela impõe a liderança com conhecimento, sem precisar humilhar ninguém.” Com frequência, também exerce o papel de conselheira sentimental. Certa vez um jogador bateu em sua porta na concentração, desesperado. “Ele tinha feito sexo sem camisinha e queria saber depois de quanto tempo dava pra saber se a moça tava grávida”, conta a treinadora.

 



Robson, o capitão. Foto: Felipe Larozza / VICE.

Embora não milite em nenhuma causa feminista, Nilmara é símbolo da mulher num ambiente dominado pelo machismo. Ao menos no Manthiqueira, comportamentos masculinos corriqueiros e opressores sucumbem à autoridade da treinadora. Enquanto Nilmara dá a letra na preleção, nenhum homem, nem mesmo o presidente, a interrompe. Quando Nilmara toma uma decisão, nenhum homem, nem mesmo o capitão do time, a desautoriza. “Nós, mulheres, somos capazes de liderar, de impor respeito e confiança. Seja em um grupo de homens ou de mulheres. O que nos falta é oportunidade e espaço”, afirma.

O pioneirismo de Nilmara não é raro apenas no universo do futebol masculino. Entre os 20 clubes femininos que disputaram o último Campeonato Brasileiro da categoria, só três são dirigidos por mulheres: Tiradentes-PI, São José-SP e Rio Preto-SP, finalista da competição. Quem comanda a seleção feminina, por sinal, é um homem – Oswaldo Alvarez, o Vadão. Assim como no primeiro anúncio do ministério do presidente interino da República, Michel Temer, não há nenhuma mulher na diretoria da Confederação Brasileira de Futebol (CBF). Esporte mais popular do país, o futebol reflete não só a subvalorização do trabalho da mulher na sociedade brasileira, mas também a falta de representatividade feminina em posições de comando.

Nilmara pretende contribuir para mudar essa realidade. Ela cita como exemplo a seleção feminina dos Estados Unidos, que é treinada por uma mulher. Em abril, as principais atletas do time encabeçaram um movimento para processar a federação de futebol do país, que paga quatro vezes mais em premiações aos jogadores da seleção masculina. Mesmo com bom desempenho no Manthiqueira, Nilmara até hoje não recebeu propostas de outros times, nem mesmo femininos. Atuações épicas, como a virada de 4 x 3 sobre o time do treinador que não aceitava perder para mulher – em 2014, ela voltou a levar a melhor sobre Aguinaldo Moreira, dessa vez com uma goleada de 5 x 0 –, parecem não ser suficientes para chamar a atenção dos dirigentes.

Ainda que crítico das religiões, Kant acreditava em Deus. Dado e funcionários do Manthiqueira, pelo visto, também. Foto: Felipe Larozza / VICE.

Neste ano, o Manthiqueira luta pela sobrevivência. O clube esgotou os últimos centavos que sobraram do terreno vendido por Márgelo em Goiás. Com dívida de 1 milhão de reais e sem investidores, o presidente cogita vender o centro de treinamento para saldar os débitos e, consequentemente, fechar as portas. A última esperança é o acesso à terceira divisão do Paulista. Para isso, o time precisa se recuperar. Foram quatro derrotas nos quatro primeiros jogos na edição atual da quarta divisão, uma sequência inédita da equipe sob a batuta de Nilmara. Mas Dado de Oliveira não deixa de acreditar na capacidade de reação da treinadora e de seus comandados. Ele se apoia nas boas lembranças após as vitórias. “Depois da nossa virada histórica contra o Atlético Mogi, tive vontade de parar o ônibus que nos levava de volta no meio da estrada, eu tive vontade de parar o tempo. Ali era felicidade em estado pleno. Momentos como esses fazem todo sacrifício valer a pena.”

Ao longo da conversa, o filósofo Dado faz citações recorrentes a, além de Kant, nomes como Karl Marx, Werner Heisenberg, Sigmund Freud e até John Lennon antes de resumir o sentido da existência do seu Manthiqueira. “Em essência, somos o time do amor. Nossa missão é levar uma mensagem de otimismo e igualdade ao mundo.” A mesma igualdade defendida por Nilmara Alves, uma mulher empoderada no império dos boleiros: “O futebol brasileiro ainda é muito fechado à figura feminina”, diz. “Pretendo lutar para que a mulher seja valorizada e tenha mais espaço. Não quero privilégios, só oportunidades iguais.”

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Por Breiller Pires da coluna Vice Sports.

 

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