Interpretações primorosas de Regina Casé e de Camila Márdila

Nas residências de classe média alta não é raro encontrar um mesmo padrão de empregada doméstica: de origem nordestina, que mora no emprego em um quartinho apertado e, muitas vezes, exerce o papel de mãe, além de cozinhar, limpar, servir e passear com o cachorro.

É comum ser apresentada como “quase da família” desde que se mantenha “no seu lugar” e não arrisque nenhuma ousadia como, por exemplo, interpretar que pode usar o jogo de xícaras de café que achou lindo e presenteou a patroa e estreá-lo para oferecer essa bebida popular aos amigos da família na festa de aniversário dela, uma executiva de sucesso que mal conhece o filho, menino que cresceu e aprendeu o que é afeto na sincera interação com a doméstica.

Essa relação de casa-grande e senzala que se sustenta há gerações na nossa sociedade, é o mote escolhido por Anna Muylaert em “Que horas ela volta?”, seu mais recente filme em cartaz para quem quiser prestigiar uma bela narrativa do cinema nacional.

Com interpretações primorosas de Regina Casé, na pele da Val, a doméstica baiana, e Camila Márdila, a Jéssica, filha que não vê há muito tempo e que decide romper o ciclo de repetição de nordestinos que vem para São Paulo como mão-de-obra barata em troca de um salário mínimo, casa, comida e uma dedicação de 24 horas por dia, a fita retrata com delicadeza, humor e drama, as contradições, abusos e conflitos nessas relações ainda comuns nos dias de hoje.

Bacana é que a diretora decidiu mostrar que essa realidade pode se transformar, na medida em que o acesso à informação e a diferentes conhecimentos encontram-se praticamente universalizados, permitindo que jovens de qualquer região do País tenham oportunidades diferentes das dos seus pais.

Nesse sentido, Jéssica representa a possibilidade de novas perspectivas. Vem para Sampa prestar vestibular de arquitetura, e com segurança e personalidade firme invade a residência dos patrões da mãe, ocupa todos os espaços, não se deixar abalar, desperta paixões, inveja e até menosprezo. No final supera todas as tentativas da patroa de mantê-la “no seu devido lugar”. E mais: suscita na mãe, Val, a coragem para romper com o ciclo de submissão.

Em “Que horas ela volta?”, a senzala enfrenta os obstáculos impostos pela casa-grande e quebra paradigmas seculares. Não deixe de ver o filme e de refletir sobre as silenciosas transformações que estão sendo protagonizadas por milhares de brasileiros aqui e agora. Até a próxima.

Leno F.Silva é diretor da LENOorb – Negócios para um mundo em transformação e conselheiro do Museu Afro Brasil. Editou 60 Impressões da Terça, 2003, Editora Porto Calendário e 93 Impressões da Terça, 2005, Editora Peirópolis, livros de crônicas.

 

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