É uma coisa difícil de determinar, muito difícil. Repare. A tendência geral é todo mundo fazer uma dieta, seja qual for sua duração. Umas pra vida toda; outras, até colocarem uma torta de chocolate diante de nós. Os que fazem dietas “saudáveis” não raro incluem o salmão nessa dieta com lugar de destaque. Mas não existem evidências de que o salmão de criadouro é o demo em forma de peixe – cheio de antibióticos, hormônios de crescimento e até transgenia? Pois é. Isso sem falar na manteiga, na gordura de porco, criminalizadas até recentemente e, agora, liberadas-geral a tal ponto que parece que o porco só tem barriga? E o gluten, então? O pão milenar de trigo de repente se tornou inimigo do homem. Parece, portanto, que não existe filosofia dietética alguma. Come-se o que convêm, ainda que a justificativa tenha que vir do milenar Oriente. Tudo certo, mas tudo incerto.
Pense então nos estilos culinários – nas “filosofias” que importamos de contrabando desde os tempos coloniais. Depois dos ibéricos, assimilamos o francesismo, a nouvellecuisine, os espanhóis e, mais recentemente, o raciocínio-root. Não temos tradição a defender, a não ser nos deixarmos levar gostosamente. O nosso autêntico escondidinho? Nos cansamos dele e pronto: colocamos o recheio por cima, como um “mostradinho”. Importamos o pudim de leite? Logo encontramos como enfiar-lhe o leite condensado e chamarmos isso de “tradição”. Descobrimos a baixa temperatura que já estava descoberta pelos churrasqueiros. Fazemos espumas de tudo, conforme aprendemos com os espanhóis – especialmente quando o mundo todo já as abandonou. Macarrão com molho de pupunha ou com arroz-feijão; petit gateau de cupuaçu; chiclete com banana. Hamburguer gourmet, bobagem transnacional aqui cuidada com carinho. Aqueles que disseram que caminhamos para uma “culinária bossa nova” erraram redondamente. Estamos sempre fora de tom, atravessamos o samba dos outros, fazemos nosso “samba japonês” e vamos para a rua…
Tu me mando cata japão
Cata aí tu que tu que taco no chão
O que nos falta é uma ideia clara do que nos expressa filosoficamente, e acharmos a nossa expressão culinária é o mesmo que nos acharmos; nosso problema é de “achamento” (parodiando Jorge de Lima, em “Todos cantam a sua terra”, 1926). Até hoje os nossos filósofos culinários interpretaram nossa cozinha; é chegado o momento de transforma-la. Ela está de cabeça para baixo. O que nos expressa não é qualquer pureza, mas a mistura. Somos misturados; a nossa filosofia é a misturação. Somos informes, mas não disformes.
Misturamos estilos, misturamos ingredientes, misturamos nossas ideias. Nos misturamos nos outros e com os outros. Temos horror à pureza, à clareza, e não reconhecemos nelas qualquer superioridade. Achamos que somos miscigenados – misturados desde o início dos tempos de forma indelével. E se procuramos nossos caracteres, achamos nenhum. Macunaimicamente.
Misturação é palavra feia. Por isso, em culinária, a nossa é a “filosofia lobozó”. Veja bem: o lobozó, prato apreciadíssimo nos rincões desse Brasil caipira, não tem receita. Sai do nada sem ter sido planejado. É misturar o que se tem à mão, seja jiló, abobrinha, maxixe, quiabo, tomate, grelos (cambuquira), queijo, qualquer coisa, colocar uns ovos e a icônica farinha de milho. Pronto! Tem-se uma coisa qualquer que é um…lobozó! É o contrário do cartesiano arrumadinho, do dissimulado escondidinho, da canônica feijoada que até dia certo tem como uma missa…
Lobozó é a confusão que alimenta, como um Toddy só nosso. Lobozó é gostoso porque é único, se improvisou na hora, até por falta de alternativa. É memorável sem se fixar na tradição. Lobozó é imediato, é o ser-aí da comida. Nem tem adjetivo. Está na fronteira do refogado, da omelete, e não se resume a nenhum deles. Não se pode zoar, convidando alguém para uma “lobozoada”. Isso não existe. Faz-se, e pronto. Ninguém poderá dizer “o lobozó da minha mãe é melhor do que o da sua” porque não há uma metafísica do lobozó, como há do gefilte fish. Somos amplamente o lobozó. E se alguém ousa imprimir-lhe uma ordem, logo desmonta sobre si mesmo, confundindo o inconfundível.
O jeito é lobozar sem culpa. Reconhecer que inventamos a nouvelle cuisineno quibebe; que somos ibéricos no porco; amamos os norte-americanos no hamburguer; enchemos a beirada da pizza de catupiry para lhe emprestar uma toponimia tupi no prato; queremos porque queremos que o açaí seja universal como o kiwi. Temos a fome, mas a misturamos com a vontade de comer. Isso por acaso não é lobozó na sua mais pura expressão filosófica? Que digam os doutos…