Nosso gringo Peter explica o Carnaval… para os gringos

Conhecedor da obra-prima de 1952 do colunista Art Buchwald, do New York Herald Tribune Paris, “Explicando a Ação de Graças aos Franceses”, (A Turkey Dinner With French Dressing) que se tornou quase tão icônica quanto o peru recheado para o jantar de Ação de Graças, neste ano de tumulto e caos mundial, parece um bom momento para parar e tentar explicar o Carnaval brasileiro aos meus velhos amigos gringos para que eles possam meditar sobre o que estão perdendo.

Meus amigos ianques precisam saber que o Carnaval é mais um estado de espírito brasileiro do que um feriado fixo. “Oficial” é uma daquelas palavras portuguesas maravilhosas que soam muito, bem, mas “oficial” na realidade significa mais ou menos o que os locais decidem que deve significar. Oficialmente, o Carnaval começa este ano na sexta-feira, 1 de março, e só fica sem energia e acaba na quarta-feira de cinzas, 6 de março. Os amigos começam a desejar-lhe um bom carnaval semanas antes do início do “oficial”, mas à medida que ele se aproxima, pode-se sentir o seu espírito no ar e já ficar embasbacado com as carnes decorosas, exibidas extravagantemente em nosso clima quente de Verão.

O verdadeiro carnaval pode começar a qualquer momento em blocos de rua onde as bandas parecem emergir do nada, o samba e o batuque preenchem o ar em São Paulo e no Rio (outras regiões refletem as origens de seus moradores, preferindo o frevo, o maracatu ou o axé) e um quarteirão ou mais das ruas dos bairros são tomados pelos foliões alegres cantando músicas especiais compostas para o desfile e criando congestionamentos de trânsito de proporções monumentais. A maioria dos motoristas parece não se importar muito: é Carnaval. Como o próprio país, o Carnaval é uma mistura maravilhosa de cores, sons e sabores que mudam de ano para ano, de geração para geração e se há dança nas ruas, fantasiados ou não, dentro ou fora do Carnaval oficial, provavelmente não seria o mesmo que uma entrada pela porta traseira de um pré-jogo da temporada, mas hey homem, é isso que faz o Brasil, o Brasil.

Carne Vale em Roma cerca de 1650. Imagem: Reprodução / Wikipedia.

Acredita-se que o Carnaval se originou como um festival pagão no antigo Egito, em todo o mundo teve lugar alguma forma ou outra de celebração para comemorar o fim do inverno e o início da primavera, para honrar os deuses e para rezar por boas colheitas e boas fortunas. Os cristãos romanos, antecipando o jejum pré-pascal, chamaram-lhe “Carne Vale”, literalmente, adeus à carne. Os colonos portugueses no Brasil, para não deixar o velho mundo totalmente para trás, trouxeram consigo a Quaresma. E o que seria da Quaresma sem o Carnaval como preparação? Eles também povoaram o país com 4 milhões de escravos africanos e, com o tempo, seus rituais foram incorporados ao tecido da festa. O carnaval sempre foi apreciado principalmente pelos trabalhadores, cujos trajes ironicamente zombavam das roupas e maneirismos históricos dos ricos.

O maior bloco de rua do mundo, o Galo da Madrugada completou 40 anos em 2018. Foto: Rio Mar / Recife.

Apesar das extravagâncias do Rio e de São Paulo, o carnaval nas cidades do norte, como Recife e Salvador, sempre atraiu milhões de pessoas. Em Recife, perseguir o Galo da Madrugada é um bloco sem fim todos os sábados de carnaval. Salvador é famosa pelos carros alegóricos motorizados “Trio elétricos” que se movimentam pelas ruas, com muita música e seguidos por milhares de quilômetros, dançando até o fim. Em Olinda, uma pequena cidade de artistas perto de Recife, fantoches gigantes são mantidos acima das cabeças dos dançarinos de rua que enchem as ruas estreitas com tanta força que é preciso ter cuidado para não ser esmagado. Isso sim é um verdadeiro bloco e deixaria a polícia da Virgínia louca.

O Trio Elétrico é um dos grandes atrativos do Carnaval da Bahia e outras festas do país. Foto: Divulgação.

Os carros alegóricos do Carnaval desfilarão durante uma hora cada um na frente dos 90.000 espectadores no Sambódromo do Rio ou no Sambódromo menor de São Paulo, que abriga 30.000, ambos projetados pelo renomado arquiteto brasileiro Oscar Niemeyer para permitir o melhor espaço possível exclusivamente para os poucos dias de Carnaval. Para alguns, a preparação para as duas noites mágicas exija o esforço de um ano. Os carros alegóricos elaborados e literalmente milhares de trajes necessários para cada uma das principais escolas de samba são o produto de uma cultura carnavalesca que combina amor, trabalho duro e crescente comercialização. E se alguém perguntar se esses recursos não seriam mais bem usados para ajudar a um terço da população que vive abaixo da linha da pobreza, você poderia muito bem não ter feito a pergunta. O carnaval é sagrado. 

Sambódromo, a passarela do samba no Rio de Janeiro em noite de desfile. Foto: Riotur.

Há apenas dez anos, a alegria do Carnaval em São Paulo era a de que todos tinham saído da cidade e, como diz um amigo, era possível: “apenas aproveite as ruas vazias”. Agora a cidade é invadida por mais cinco milhões de pessoas durante algumas semanas, causando a necessidade de mais agentes de trânsito, milhares de banheiros químicos e uma logística tremenda de todas as variedades e necessidades que dificilmente são totalmente atendidas pelo governo municipal.

Bloco Tarado Ni Você, uma dos mais animados do Carnaval de São Paulo desfila na região central. Foto: Divulgação.

Nos primeiros tempos, o dinheiro para essas produções cada vez mais elaboradas costumava vir principalmente de pequenas doações dos membros das escolas de samba, muitas vezes pobres e de alguns patrocinadores. No mundo comercial de hoje, isso mudou e, como muita coisa no Brasil, há o cheiro de corrupção nos bastidores. De acordo com o jornalista e especialista em carnaval Aydano Motta “Você pode ver muitos exemplos de patrocínios questionáveis durante o Carnaval”. Durante anos, as escolas de samba foram apoiadas por chefes do jogo, conhecidos como bicheiros. Agora as escolas recebem patrocínios de empresas e do governo. Há alguns anos, uma marca de iogurte oferecia patrocínio e esticou a imaginação artística sobre como fazer uma dança de samba como uma ode a um laticínio. Então havia fantasias de probióticos, muitas fantasias de vacas.” 

A escola Beija-Flor, vencedora do Carnaval do Rio no ano passado, foi criticada por aceitar uma doação multimilionária do ditador da Guiné Equatorial, Teodoro Obiang Nguema (Samba School Outrage Points To Carnival’s Murky Financial History). Este ano uma das escolas está sendo patrocinada pela Suíça. Talvez os suíços possam conseguir uma pechincha com esses velhos trajes de vaca.

Presidente da Guiné Equatorial patrocinou a Escola de Samba Beija-Flor com 10 milhões de reais. Foto: Luiz Eduardo Perez / EFE>

Como me comentou um notável crítico urbanista: “A parcela de pessoas que ficam para dançar, beijar e desfrutar é enorme. A parcela de pessoas que deixam a cidade para se afastar dela também é grande. Como tudo no Brasil, o carnaval também mostra os extremos da sociedade dividida do país e a linha muito tênue de resolução de conflitos. Na verdade, o carnaval não é o entretenimento favorito de todos, embora deva agradar mais aos meus conterrâneos do que a outro reality show. É ótimo ter um fim de semana de cinco dias, mas dançar samba nas ruas ou assistir horas e horas de carros alegóricos nos desfiles pode se tornar um pouco exagerado. Como um sábio amigo brasileiro aconselhou há alguns anos atrás, a melhor maneira de aproveitar o Carnaval é fugir para a praia ou para a casa de campo. Então, se a tentação de assistir ao carnaval se tornar avassaladora, pegue uma cerveja gelada e assista na televisão por uma hora ou mais. É uma das maravilhas do mundo.

***
Peter Rosenwald mora em São Paulo e combina sua ocupação como estrategista de marketing para grandes empresas brasileiras e internacionais. Tem também carreira em jornalismo onde atuou por dezessete anos como crítico sênior de dança e música do ‘The Wall Street Journal’. Escreve toda semana no São Paulo São.

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