‘O amor é o poder’: Estela Renner diretora de docs. sobre a infância

Estela Renner era muito menina quando assistia à avó paterna, dona Cilú, filmar a família com uma Super-8 em punho. Era meados de 1970, e o cinema era não só um passatempo, mas uma paixão daquela mulher, que tinha como atividade principal cuidar da casa, olhar pelos quatro filhos e, como bem lembra Estela, “ser avó”. Em um dos cômodos de sua casa, Cilú construiu uma ilha de edição. Sabia montar os filmes, gravava em planos variados e investia no equipamento. Foi suficiente para encantar Estela.

Se para a avó era custoso e ousado demais seguir com o cinema como profissão, para a neta foi não só viável como infalível. Hoje, aos 41 anos, Estela é diretora e roteirista, reconhecida dentro e fora do Brasil por documentários estilo nocaute, que desestruturam quem os assiste. O motivo é simples: ela toca em temas caros à sociedade e cada vez mais quentes. Infância é sua especialidade, e sobre o assunto já são dois longas lançados e um em fase de finalização.

O primeiro, Criança, a alma do negócio, de 2008, coloca luz na má publicidade dirigida aos pequenos e inaugurou o trabalho da Maria Farinha Filmes, produtora criada ao lado dos sócios Marcos Nisti e Luana Lobo. Muito além do peso (2012), seu maior sucesso, é derivado do primeiro filme, mas com um foco específico: a epidemia de obesidade infantil no Brasil e no mundo. O longa já ultrapassou 2 milhões de visualizações na internet. Nele, Estela e sua equipe viajam o país visitando famílias e mostrando o que e como nossas crianças comem. Um mérito e uma coragem desse projeto: os rótulos e as marcas dos produtos são todos expostos. Tabelas nutricionais são escancaradas ao lado de punhados surpreendentes de açúcar, gordura e sal; ingredientes muitas vezes velados nos alimentos.

O projeto mais recente foi um pedido de três instituições à diretora. A Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, o Instituto Alana – ONG parceira e a maior incentivadora das obras de Estela – e a Fundação Bernard van Leer, todas dedicadas a causas da infância. “Queremos que você faça um filme autoral sobre a importância dos três primeiros anos de vida de uma criança”, dizia o convite que Estela atendeu “com o coração”. O longa está sendo chamado de Be – um filme sobre os primeiros 3 anos da vida de uma pessoa, mas o nome ainda pode mudar, e deve estrear no primeiro semestre de 2016. “Sem afeto e presença simplesmente uma criança não acontece. Por isso é tão precioso e primordial investir no amor na primeira infância”, diz a diretora, convicta depois das filmagens do documentário.

De família de classe média alta, criada no bairro paulistano de Alto de Pinheiros e educada em uma escola de elite, Estela foi ter contato com o que lhe era diferente na adolescência em viagens que fazia como bandeirante a comunidades carentes do interior do país. Antes de decidir o que faria da vida, deu boas voltas. Foi modelo, atriz, cursou nutrição na USP e desenho industrial no Mackenzie, e dirigiu muita publicidade. Mas sempre soube que precisava trabalhar com pessoas e para elas. Ela gosta de chamar isso de “empatia pelo outro”. O cinema virou certeza quando foi fazer um vídeo no México, um trabalho voluntário para promover uma creche que cuidava de crianças que viviam na fronteira do país com os Estados Unidos. “Dirigi e me dei conta de que queria mesmo fazer audiovisual.”

E ali está ela, pronta para perturbar. Na sede do Instituto Alana, em um arranha-céu no bairro de Pinheiros, em São Paulo, onde também fica a Maria Farinha Filmes, Estela nos contou sobre sua vontade de cutucar através das câmeras. Ainda falou de maternidade, dos três filhos, de seu casamento com o cineasta Tadeu Jungle, publicidade, redução da maioridade penal e transformação social. “Me interesso por filmes que provoquem e sensibilizem, que ajudem a transformar o mundo em um lugar melhor. Pode parecer utópico e clichê, mas levo a sério. Sendo um pouco sonhadora, acredito na transformação que podemos realizar com o cinema.”

Tpm: Em ‘Be’ você fala sobre a importân-cia do amor na primeira infância. Sua experiência como mãe influenciou? 

Estela Renner: Tenho três filhos, mas isso não significa que já sabia o suficien-te. Claro que eu tinha um começo, um lugar de onde partir. Além de ser mãe, não tive babá. Sempre tive uma relação muito próxima com eles. Mas estudei muito para fazer o filme. As três instituições que me convidaram são sérias, idôneas, e lidam com esse assunto há muitos anos. Foi assim que decidi ficar em cima de uma das descobertas científicas que mais revolucionaram o olhar para a primeira infância. A criança não é uma tábula rasa quando nasce, em que você insere um monte de informações. Mas também não é puramente bagagem genética. Ela vai se formar através das relações humanas e da genética. Então, esses primeiros três anos são uma janela gigante para a formação dos indivíduos. Muita gente acredita que não há aprendizado nesse período. Mas, na verdade, esse é o momento mais formador da vida. Isso muda tudo.

Por isso o amor nessa fase é tão importante?

Sim. Sem amor simplesmente essa criança não acontece. E amor se estende a muitas coisas. É você amamentar seu filho, e quem não puder amamentar, é dar a mamadeira com amor e atenção, olhando nos olhos dele. Segurar esse filho nos braços e se dedicar ao contato amoroso através do olhar, do toque.

O filme está sendo finalizado em um momento no qual discutimos a redução da maioridade penal. Esquentando essa discussão vemos diversas histórias de menores infratores que nasceram e cresceram em famílias fragmentadas, sem amor. Você concorda que o problema dos crimes muitas vezes está nesse contexto familiar? 

Vou recorrer a James Heckman, um dos especialistas que entrevistei para o Be. Ele ganhou o prêmio Nobel de economia e tem muitos artigos publicados nos Estados Unidos. James falou de um estudo que fez para identificar em qual idade a criança aprendia mais. Quando chegaram na primeira infância, viram que era o momento em que de fato mais se aprendia. E perceberam que as sociedades que mais cuidavam dessa fase conseguiam prevenir crime, violência, comportamentos compulsivos e uso de drogas.

Para o James, é mais fácil e possível, em termos econômicos, oferecer uma primeira infância saudável e amorosa do que tentar consertar no adulto comportamentos nocivos. É mais importante investir na família e nos cuidadores dessa criança do que depois “fix a broken man”, como ele diz. Porque como você vai voltar lá atrás em experiências traumáticas formadoras daquela identidade? Elas estão solidificadas, vêm de um tempo em que aquela pessoa era bebê. E mais, essa pessoa nem tem mais acesso a essas memórias. Que adulto esperamos que uma criança abandonada constantemente, que vive um estresse tóxico diário, vire? Segundo James Heckman, nada dá mais lucro pro Estado do que investir no ser humano assim que ele nasce.

Leia a íntegra da entrevista a Natacha Cortêz na Revista TPM: http://goo.gl/xpzF89

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