O Homem de gravata preta

O homem de terno cinza, gravata preta e chapéu estava no crepúsculo da vida desde que havia perdido o filho; desde então, passou a usar somente gravatas negras e, embora tocasse a vida com energia e amor, sem perder o aplomb, tornou-se um homem triste como sua própria roupa.

Morava nos Campos Elíseos; para ele, aquilo nunca poderia ser chamado de Barra Funda. Embora tivesse nascido no bairro no século XIX, filho de família pobre, cujo pai, dizia a lenda, havia fugido com uma trapezista de circo, ele era um diplomata, não por profissão, mas por conduta: tratava todos como pessoas de bem.

O homem chamava sua empregada de senhora e o marido dela, um pipoqueiro, de senhor de respeito. Tratava o carrinho de pipoca como uma ferramenta de trabalho digno e tinha cuidado com o instrumento que à noite pedia para trancá-lo na garagem, ao lado de seu Jaguar, que um dia pôde guiar. Esse carro era sua relíquia mais preciosa.

Tanto um embaixador, político, professor, aluno quanto um pipoqueiro mereciam deferência em sua opinião. Eram seres especiais, cada qual proeminente em seu afazer. Ao lado de sua casa, a paisagem havia mudado muito: na lateral esquerda, estava agora um grande edifício e, no lado direito, uma placa luminosa soluçava com as luzes néon: MOTEL PANAMÉRICA – DIA E NOITE.

Nada incomodava o homem de terno cinza, gravata preta e chapéu. O motel é uma necessidade da vida moderna, você sabe, e com a propaganda chegando, eles precisavam colocar luminosos. Além do mais, os hóspedes são silenciosos entre quatro paredes.

Na frente da casa havia um pequeno jardim com rosas, pé de nêspera, amora e um aroma de jasmim, tudo diante do terraço. Lá dormiam os seus protegidos, como ele dizia. Pobres diabos que não tinham onde dormir nem o que comer. Ali, ao menos, possuíam um teto, cobertores e travesseiros, mais um prato de sopa. Os mendigos eram tão agradecidos que nem nós, seus parentes, podíamos ir visitá-lo após o anoitecer. Do terraço, eles punham para correr qualquer um. 

Não, nem a família nem malandro algum entrava naquela casa. Uma noite daquelas, o filantropo decidiu que já havia cumprido sua missão como professor, pai, avô, marido, entre inúmeras outras funções que a vida lhe dera. Andar de ônibus, ler, ler e ler, escrever, escrever e escrever já não era mais possível. Levara um tombo dentro do ônibus e nem com a lupa dava para ler, cansava muito. O mesmo diante da TV P&B em que adorava assistir a TV Cultura.

Organizado, tinha feito uma pasta especial para seu neto querido não ter dificuldades com a sua morte, a FINIS. Até seu final no hospital, no epilogo da vida, foi elegante: partiu num pijama de flanela grossa, a cabeleira branca bem penteada. Meu avô, o homem de terno cinza, gravata preta e chapéu, morreu na minha frente. Minutos antes, conversamos um pouco. Os médicos, céticos, disseram que ele estava em coma, portanto, era impossível que tivesse me respondido algo. Falaram que, possivelmente, foram apenas reflexos do corpo no fim. Mas eu sei bem o que conversamos.

A vida do meu avô, já morto, ainda teve compromissos de corpo presente, com velório na universidade, em meio a outros professores e políticos. Num sussurro de gritos presentes, foi velado com seu terno e gravata preferidos. No momento em que fui lavar meu rosto no banheiro, ouvi uma das faxineiras dizer à outra: “Hoje se foi aquele professor educado e feliz, aquele do terno cinza, gravata preta e que estava sempre de chapéu”.

***
Marina Bueno Cardoso é jornalista, cronista colaboradora dos portais saopaulosao.com.br e musarara.com.br. Ministra oficina de crônicas em unidades do SESC/SP. Esta crônica é de seu livro “Petit-Fours na Cracolândia”, publicado pela Editora Patuá.

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