O Mercado de Pinheiros? Então… Mas eu não como bioma

O rapaz na rua, jeitão hipster, me aborda e pergunta: “O senhor sabe me dizer onde fica o Mercado de Pinheiros?” Estavamos a 100 metros do dito cujo, e não pude deixar de me lembrar de experiência semelhante há anos, quando o Mercado Central foi “refuncionalizado” por Dona Marta Suplicy, e alguém de camisa polo me perguntou pelo “setor de peixes”, provocando risos nos funcionários de lá que nunca souberam que o Mercado Municipal tinha “setor”…

Todo o mercado de Pinheiros está agora pintado num único tom de cinza. Mas a coisa começa mesmo com aquela sensação de que o conhecimento de colégio finalmente serve para algo: os biomas estão todos lá representados, tendo pulado dos livros de geografia para a vida. Cada um tem seu box, menos a caatinga, que Rodrigo Oliveira preferiu não levar nos ombros, abrindo no lugar um Mocotozinho (meio chinfrim, onde se compra cachaça, vinho, e aqueles magníficos torresmos do Mocotó agora meio muxibentos, coitados; também pudera, ficam lá no expositor como de bar de beira de estrada do sertão) – bom para lembrar que torresmo mesmo só na Vila Guilherme… 

Mas imagino que o rapaz perdidão que me abordou na rua deve ter se encontrado entre produtos do cerrado, do pampa, da amazônia, mata atlântica. Tudo o que é artesanato alimentar em conserva está lá (deu saudades do Empório Poitara…). Você pode comprar um óleo de macaúba, de pequi, uma pimenta baniwa, um pacotinho de baru, uns biscoitos de farinha de jatobá e até mesmo umas belas cerâmicas indígenas,  umas camisetas, umas facas gaúchas…  Lojas bacanas como nunca lá se viu: tudo de arquitetos e decoradores de interior. Muitas frases conscientizadoras grafadas nas paredes. Moderno.

 
Os novos permissionários, apoiados e coordenados pelo Instituto ATA e Instituto Socioambiental, vão dar cara nova ao mercado. É o que espera o prefeito, conforme disse em seu discurso. Sim, teve discurso de prefeito, de secretário, de índio, de representante dos permissionários, Chef Atala, etc. Um festão, para os moldes do mercado mirradinho que Pinheiros vinha se tornando.Tem gente entre esses novos permissionários que, visionário  – já apurei – comprou 3 box de outros comerciantes para, no futuro, abrir sabe-se lá que negócio. É uma velha pratica que deveria, na verdade, acabar. O açougue Royal Meat é sócio de todos os açougues do Mercado de Pinheiros. Por que? Porque o “preço público” de locação é muito barato e, para um atacadista, é melhor ter seu estoque lá do que em qualquer outra parte da cidade. 

Claro que para nós, consumidores, seria melhor que houvesse concorrência. Do Porco Feliz, do Carnes do Cerrado e assim por diante. Mas o sistema de permissão a “título precário” tem essas distorções embutidas, além do que não existe mesmo licitação para escolha dos pretendentes. O “fundo de comércio” de um desses boxes foi vendido, para o novo permissionário, a R$ 100 mil.  Checho, aquele boliviano porreta que foi pioneiro lá, aguça o apetite de todo mundo. Torço para o mercado não virar a praça de alimentação para os funcionários de escritórios que começam a pipocar na região, aproveitando o “exótico” do mercado para fazer seus selfies. Torço para que algum dia, um prefeito passeando por Barcelona, visite o Boqueria. Devo ser um cara muito antigo, que ainda acredita que um mercado é um centro de abastecimento cotidiano, não um expositor de amenities. Acho tudo bacana, mas sinto falta de mais opções de carnes, de frangos, de peixes, de legumes e verduras. O sacolão de Pinheiros é um lixo. Há tantos outros melhores na cidade que a Prefeitura bem podia levar um para dentro do mercado. Mas prevalece lá uma lógica perversa de monopólio.

O ponto vendido a R$ 100 mil, há pouco mais de um ano “valia” R$ 60 mil. Bom negócio. Se a precariedade da permissão fosse exercida pela prefeitura não haveria essas especulação imobiliária que se agrava. O grande público não entende os meandros das leis e regulamentos, e acha que a mão cega do mercado regula tudo. Balela.O que me chateia mesmo, como consumidor e frequentador do Mercado de Pinheiros, é ver que a prefeitura, mais uma vez, não fez sua lição de casa. Todo mundo que abre um mercado – e revitalizar, refuncionalizar, etc é equivalente a abrir um mercado novo – deve estudar o público, fazer um mix de lojas, buscar quem melhor possa oferecer aqueles serviços, e assim por diante. Sendo um órgão público o “incorporador”, devia também fazer audiências públicas, expor seu projeto por inteiro, ouvir críticas, reformular e seguir. 

Nada disso acontece sob a égide da administração atual. É tudo no voluntarismo, caminhando por uma legislação falha que permite a formação de monopólios e cartéis dentro do espaço público justamente porque a prefeitura não acredita que possa manipular as permissões a título precário em prol do bem público. Como em tudo na administração pública, tende a levar quem pressiona mais,  e se você critica algo, só vê diante de si cara de paisagem… O espírito público é proporcional ao espírito crítico. E não se renuncia a um poder impunemente. Outros “poderes” se assenhoram do vazio e fazem o que bem entendem. Tá bom: uma loja prá cada bioma, mas eu não como bioma. Como mesmo bons legumes, boas frutas, boas carnes, peixes, etc. Sinto falta de uma boa loja de queijos, que abrigue a variedade de queijos da Canastra (aliás, essa serra deve pertencer a algum bioma, não é?) e assim por diante. Vamos combinar que assim seria melhor para mais gente?

 
***
Carlos Alberto Dória é bacharel em Ciências Sociais pela USP, com doutorado e pós-doutorado na Unicamp, tendo estudado o darwinismo no Brasil. Possui também vários livros publicados sobre sociologia da alimentação: Estrelas no céu da boca; A culinária materialista; Formação da culinária brasileira; e-BocaLivre.
 
 

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