O príncipe através dos miasmas (Pamps, 1953-2015)

É difícil explicar a importância de Sérgio Pamplona Jr., o Pamps, sem falar algo da cena em que ele se notabilizou, o underground paulistano dos anos 1980. Ao contrário da cena que se desenvolvia contemporaneamente no Rio de Janeiro, e que contava com o agito do Circo Voador e da rádio Fluminense FM, a Maldita, a cena de S. Paulo pouco penetrou na grande indústria fonográfica.

Enquanto no Rio bandas como Paralamas do Sucesso, Kid Abelha e Biquini Cavadão pulavam rapidamente das primeiras apresentações para contratos com as gravadoras, em São Paulo se desenvolvia uma cena, digamos, mais lunar e ensimesmada. Dá para lembrar que as sedes das grandes gravadoras ficavam no Rio, que o público médio carioca era mais entusiástico e festivo, e mesmo o que eu chamava de “fator Baixo Gávea”, um certo troca-troca amistoso que favorecia a sustentabilidade da cena na ecologia psíquica da cidade.

Foto de Rui Mendes; desfile de Liquid Sky e Universo em Desfile no Madame Satã, 1984.


No Rio, uma experiência contracultural intensa tinha se dado na virada para os anos 70; algumas figuras da intelectualidade boêmia uisqueira da Guanabara fizeram suas experiências com maconha e mesmo LSD. Uma publicação como o Pasquim de certa forma cobria essas bases todas. O Circo Voador, quando surgiu, em 1982, era herdeiro direto de experiências como a do grupo de teatro Asdrúbal Trouxe o Trombone, e indireto da geração da poesia de mimeógrafo, como o grupo Nuvem Cigana. Figuras como Regina Casé e Pedro Bial mostram que na “corte” é possível transitar do underground para a grande mídia.

Já em São Paulo, cidade com um psiquismo imigrante mais severo, permaneceu bem mais careta e menos permeável ao desbunde ao longo dos anos 60 e 70. Evidentemente tivemos Mutantes, Secos & Molhados, temporadas dos velhos e Novos Baianos morando aqui. Mas digamos que o desbunde local mais generalizado se deu nos anos 80, com a queda da ditadura. Já não sob o signo exuberante dos hippies, como no Rio (ou Salvador, ou outras cidades que tiveram uma contracultura forte nos anos 1970, como até Recife teve). Mas sob o modo mais espartano (minimalista, classista, antissexista) de punks e pós-punks. Uma banda como o Barão Vermelho, que dava uma colorida new wave na tradição stoniana, provavelmente teria menos chance naquele underground.

Claro que houve a trajetória nacional de bandas como os Titãs, o RPM, o Ultraje a Rigor, o Metrô e o Ira! (e tentativas de contratação não exatamente bem-sucedidas de Azul 29, Agentss, Cabine C e Mercenárias). Mas a característica ranzinzice idiossincrática paulistana ficou encapsulada com osbeautiful losers (para usar o termo cunhado por Leonard Cohen) que circulavam entre clubs memoráveis como o Carbono 14, o Madame Satã, o Napalm, o Rose Bom Bom, a Aeroanta e inúmeros outros. Eram os músicos do Fellini, Chance, Voluntários da Pátria, Akira S & as Garotas Que Erraram (a minha banda). E do Smack. É aí que chegamos no Pamps. Fã do Public Image de John Lydon (ex-Sex Pistols), Pamps se filiava a uma ética e a uma estética avessa a concessões.

Essas eram tão ligadas à noção punk de começar tudo do zero que Pamps sequer usava como trunfo no seu currículo ter tocado Itamar Assumpção (que cita seu nome numa vinheta de Beleléu). Pamps construiu sua versão pessoal do pós-punk no Smack. Para começo de conversa, o nome da banda não tem nada de fofo – mesmo que Pamps não confirmasse publicamente, foi escolhido por ser um apelido para heroína. Segundo, era um supergrupo, reunindo Edgard Scandurra (guitarrista e compositor no Ira!, Ultraje e vários outros grupos), Thomas Pappon (baterista e compositor nos Voluntários da Pátria, guitarrista e compositor no Fellini) e a fenomenal Sandra Coutinho (baixista e vocalista nas Mercenárias). Mas “supergrupo” aí significa não um truque pretensioso de mercado mas, ao contrário, uma convergência de talentos para dar vida a um universo tortuoso e um tanto sinistro.

As bandas de São Paulo, um pouco desconfortáveis com o rótulo alegrinho de new wave, e antes que alguém cantasse o termo post punk, se diziam “darks”. Essa darkeza viria a desembocar no gótico. Mas o Smack passava ao largo da deprê estilizada. Tratava da angústia existencial em primeira mão. O primeiro disco do quarteto, Ao Vivo no Mosh, combina uma massa de guitarras tensas com poesia telegráfica porém inquietante (“Onde li/ não sei/ ou se vi/ não sei”; “Fora daqui/ pode existir/ fora daqui/ pode explodir”; “Um salto no claro/ escuro é o que/ ausência de cor/ ser feliz é o que/ sofrer sem dor/ aqui onde é”).

Edgard, que no Ira! adotava seu conceito punk-mod e no Ultraje dava passagem para a bobageira (“Ricota”), no Smack mandava algumas de suas letras mais consistentes, como “Mediocridade Afinal” e “Faça  Umas Compras”. As guitarras desenhavam paisagens vertiginosas ao longo da trilha pulsante da cozinha de Thomas e Sandra, com várias passagens instrumentais; Sandra colaborava com seus vocais em algumas faixas. Pode se dizer que o Smack reunia qualidades das outras bandas de seus membros, mas com uma personalidade própria e bem definida – e essa personalidade emanava de Pamps, que era um centro para os outros (na imagem abaixo, nota na revista americana Spin, julho de 1986).

spin nota

Nas manifestações das redes sociais, os amigos homenagearam a morte de Pamps, na quinta feira, saudando-o como um cara gentil, suave, de “charme misterioso”, ainda que de vez em quando exercitasse seu sarcasmo meio maldoso. Essa era sua face social; no segundo disco, Noite e Dia, o Smack já como trio (Edgard foi se concentrar no Ira!), o desenho do som da banda fica mais preciso, esparso, e a aflição das letras emerge um pouco mais. “Entendi o recado/ aqui nada faz sentido/ tudo ao mesmo tempo/ não enlouqueça”; “Estou com medo/ estou apavorado/ O que aconteceu?/ O imprevisto aconteceu/ Meu Deus, será que sou eu?”; e a inquietante enumeração de demônios em “Sete Nomes” . Apesar de umas piscadas para o dândi-rock do Monochrome Set, é um pós-punk austero e experimental, com algo de berlinense mais que londrino.

Ou, na verdade, a tradução de certos aspectos da “São Paulo secreta” que se deu a ver naqueles cinco ou oito anos da década de 1980. Há um clichê sobre São Paulo, de que seria uma cidade cinzenta e masculina, do trabalho. Cinzenta é sim, mas sua noite revelava, mais do que a ética do esforço, um feminino perigoso, de transes sedutores porém devoradores. Pamps era um dos príncipes arcanos que atravessavam com refinamento esses miasmas urbanos.

O Smack teve uma terceira vida em Smack 3, de 2008, com o quarteto original. O jornalista Mário Cesar Carvalho diz no release: “Sempre achei preconceituoso, rasteiro e injusto o rótulo de ‘música depressiva’ que foi colado no som do Smack. Esse caráter de aniquilação total, de pré-suicídio, existia (…), mas lá se foram 23 anos. O EP que está sendo lançado agora serve para sepultar a ideia simplória do que o Smack é uma banda depressiva que fazia música para se cortar os pulsos. A maior novidade é um certo flerte com o non-sense – as letras adquiriram um tom dadaísta”. Procede; mas a música continua intensa e um tanto desconcertante. Encontrei com Pamps em alguns shows recentes, como no Instrumental do Sesc Consolação, e ele falava em lançar o álbum completo dessas sessões.

Ficaremos à espera. Em “Tempo tempo tempo”, a letra de Edgard diz “Tempo, o tempo, passa com o vento/ e de tempo levo um tempo para me acostumar/ Tempo, eu não tenho muito tempo/ é o fim de um lamento que com o tempo vai passar”. Olá-adeus Pamps.

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Alex Antunes em seu blog no Yahoo. Para seguí-lo no Twitter: @lex_lilith.

 

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