Olhando seus espelhos

Seus olhos brilhavam e você esboçava um sorriso no rosto, é você estava feliz, todo pimpão, numa roupa que é a sua cara: calça caqui, camisa caqui e colete Bordeaux, que fica mais chique assim, tal qual vinho que você gosta tanto. Nos pés um tênis confortável e você andava com desenvoltura e todo aprumado, não nada de encovadinho, não, acho que foi tanta malhação, mais suas cavalgadas de final de semana que você fez na vida; pelo o visto, continua na ativa, cuidando do corpo.

Fiquei até pensando se você ainda é um túmulo para se abrir com as mulheres, se ficou com alguma efetivamente, ou se está de passagem por São Paulo, e mais, se conseguiu ir morar em Portugal depois de aposentar-se de tanto imbróglio na família. Mas fico feliz, você aos setenta e lá vai parecia mais calmo, menos tenso, apesar de ter ficado vincado no rosto aquelas marcas de tensão total que você tinha aos 48. Era turbulenta sua vida, e você não pegava leve. Fingia. Mas agora ficaram apenas sulcos na testa e no tal bigode chinês, mas aquele seu ar de conversê que não acaba nunca quando toma uns whiskies a mais, se mantém. Mas sinto lhe dizer, hoje te vi outro, um pouco mais moço,com 60/64 anos saindo do táxi. Até parece que você está me perseguindo.

Você estava a milhão, com pasta nas mãos, celular no ouvido tentando falar em pleno cruzamento de avenida, a sua cara de hoje, piorada. Se hoje, aos 48 você é pilhado, e mesmo careta parece ter cheirado umas três carreiras, aos 64 você está estressado; ah, esqueci de falar, a mesma mão que segurava o celular, também tinha um cigarrão aceso – é você voltou a fumar! Quem diria, o cara que tomou remédios milionários e fazia discurso antitabagismo, todo arrogante, como se fosse herói por ter acabado com o pito na boca estava fumando novamente.

Já sei: você quer fazer tudo para ganhar, afinal “Money makes the world go around”, como dizia aquela velha canção, e você acrescentava sempre “dinheiro não aceita desaforo, tenho que ter muito lastro para a velhice que pretendo, com grana para ter enfermeiro, porque mulher nenhuma vai me agüentar”…pelo menos era o que você afirmava desde os 30 aninhos quando te conheci.

Mas agora, noves fora, Adalberto, se enxerga no que eu vi na rua. Acho que você enricou mais ainda, e agora só restou o charme da informalidade, com lascas de todo o seu passado. Aos 70 e lá vai você está bem, fique contente, eu ainda te admiro por sua lucidez, apesar de tanta tensão mal disfarçada, chamando todas as mulheres de querida, meu amor… Colou quando você tinha seus 45, tempo bom do nosso teretetê, mas após três anos te liguei e você me tratava com as mesmas palavras, com as mesmas que você trata todas as mulheres que passam por sua vida. Porra Adalberto, que falta de criatividade.

Querido, me ouça, ainda dá tempo de fazer diferente. Que tal pular essa fase de tanta tensão, exprimido por seu pai que te cobra tanto, até hoje você parece um menino que precisa provar coisas. Olha meu querido, se aos 50 você está já próximo ao que vi você aos 64, você tem que mudar, se não só Deus sabe se você será o que vi aos 70 e picos. Me despeço por aqui, aguardando seu telefonema em comedidas risadinhas dizendo que eu enlouqueci, mas qual o quê Adalberto, se toca, ainda dá para fazer diferente!

***
Marina Bueno Cardoso, jornalista, trabalhou na imprensa em São Paulo e na área de Comunicação Corporativa de empresas. É autora do livro “Petit-Fours na Cracolândia”, Editora Patuá. Publica crônicas quinzenalmente no São Paulo São que são replicadas no site literário www.musarara.com.br

 

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