Os ‘Sedestres’ e os ‘Sediachins’ que enfrentam o mundo

O conflito entre como alguém se vê e como os outros o veem é corriqueiro, parte inescapável de como é variada a percepção que se tem do mundo, de si, do Outro. A luta para aproximar as duas percepções deve ser constante. Mas há algo nessa imagem e autoimagem que só uma educação do olhar pode permitir. 

Ligue seu olhar-câmera no alto de uma grua improvável e faça um travelling pelo alto da Avenida Paulista. Procure registrar as pessoas pelas calçadas, atravessando a avenida para ir ao MASP, ao Center 3, ao edifício Gazeta, atrasados para a próxima sessão no Belas Artes redivivo. Note um ruído na dinâmica dos fluidos urbanos, dos corpos que se movem para todo lado. 

Perceba: alguns desses andares mais parecem com movimentos de remadores em pleno asfalto ou cimento. Esses são os sedestres. Para efeito do seu olhar, nesse momento, as pessoas pela avenida dividem-se entre Pedestres e Sedestres. Pedestres, os que andam a pé. Sedestres, nós outros, os que andamos sobre “cadeiras” (“sedes, is”, em latim). 

Ninguém é pedestre fora das calçadas, a não ser, eventualmente, por suas opiniões. Mas assim como há pedestres no mundo das ideias, há quem se resuma a sedestre também fora das calçadas: são aqueles que permitem que as cadeiras de rodas os definam, assim como alguns se definem pelo carro que têm, tênis que usam, bolsa que compraram no JK. Fora das calçadas, e mesmo nelas, o conflito entre autoimagem e a visão do Outro sobre si próprio costuma ser mais complexa e desafiadora.

Quando o conflito se estabelece entre o que somos e o que querem que sejamos, nesse momento impõe-se uma decisão estratégica: ver-se apenas como sedestre ou tornar-se um sediachim. 

“Sediachim” é o que enfrenta o mundo com sua cadeira, como faz o espadachim com sua espada, ou o “enxadachim”, de Guimarães Rosa, que enfrenta o mundo com sua enxada. O que se paramenta para a luta faz de sua cadeira o instrumento para afirmar sua diferença e expor as barreiras arquitetônicas, urbanísticas e atitudinais, contra as quais, quixote em seu cavalo de rodas, ergue sua perícia de sediachim.

A identidade de cada um, velha questão, não se resume à profissão, ao gosto musical, à preferência sexual, à condição física ou ao modo como se vai da Consolação ao Paraíso: se de carro, bicicleta ou cadeira de rodas. Ninguém é seu afazer ou seu gosto ou sua condição. Mas assumir personas é necessário para a superação de obstáculos que exijam ação no meio social ou político. 

Quando diante da necessidade de afirmar um direito ou de lutar para a construção de um direito, a persona justifica-se. Afirmar que São Paulo – como toda e qualquer outra cidade no mundo – precisa ser pensada e refeita (sim, refeita) tendo em mente as circunstâncias dos sedestres – e as dos cegos, as dos surdos, às daqueles com habilidades mentais diferentes – exige mais do que a elegante postura de remador urbano sobre um incongruente caiaque sobre rodas. 

É preciso, portanto, afirmar que toda política urbana deve ser permeada pelo olhar daqueles que rompem o paradigma absurdo do homem médio, essa avis rara.Essa afirmação exige que o sedestre se transmude em sediachim e grite: Nada sobre nós, sem nós! 

E é por isso que, ao passar por um sediachim, na rua que for, no bairro onde estiver, levo a mão esquerda espalmada ao punho direito fechado e curvo-me em reverência. Assim se cumprimentam os artistas marciais.

Caio Leonardo Bessa Rodrigues é advogado.

 

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