‘São Paulo só é suportável quando admitimos que ela é feia e desagradável’

Ele é simplesmente um dos empresários mais bem sucedidos e criativos da noite paulistana. Os negócios do Grupo Vegas, do qual é um dos três sócios, estão entre os mais conceituados e lucrativos mesmo em tempos de crise – sempre com propostas estéticas que chamam a atenção pelo caráter inovador e personalidade -. Ainda assim, Facundo Guerra, 41 anos, se considera um simples comerciante.

Não é só tato para os negócios que guiam os projetos do argentino nascido em Córdoba e que adotou o Brasil, especificamente São Paulo, como sua pátria. Há também muita massa cinzenta envolvida. Seus espaços são criados por meio de profundas reflexões sobre a relação entre o paulistano e a história da sua cidade e de como são essencialmente movidos pelo desejo.

Mais do que propiciar lazer, lugares como Lions Nightclub, Cine Joia, Riviera, Club Yatch, PanAm, Z Carniceria e o recém-inaugurado Mirante 9 de Julho (todos sob a batuta do aguerrido Facundo), são verdadeiros palcos onde os dramas humanos se desenvolvem e se transformam em exemplos de excelência.

Leia entrevista com o inquieto empresário sobre empreendedorismo, criatividade, história, fetiche e retomada da cidade.

Há uma máxima que diz que a sorte sorri aos audaciosos, até que ponto isso é verdade?

Facundo Guerra: Na medida em que você se expõe ao mundo, existem muitas coisas com as quais você acaba perdendo tempo e que, no fim das contas, não dão em nada. Mas a sorte, ou a quantidade de acasos felizes ou de encontros felizes que você acaba tendo por conta dessa medida de exposição maior ao mundo, aumenta. Eu não acredito muito em sorte, mas acredito que no final das contas a máxima é verdadeira. A quantidade de acasos felizes que acabam se transformando em projetos e coisas legais para se fazer é diretamente proporcional à quantidade de vezes que você se arrisca e à exposição maior que você tem ao acaso.

Criar espaços onde as pessoas possam se libertar do ritmo frenético do cotidiano tem a ver com uma busca pela transformação da relação entre o homem e o seu entorno?

Quando você monta um espaço, você está lidando com pulsões muito fortes de vida e morte. Tem muita gente que nasceu por causa de um das casas que eu montei e tem muita gente que também acabou saindo de um clube e acabou batendo o carro porque estava saindo de uma delas embriagado. Então, você acaba criando um espaço onde os dramas humanos de determinada maneira, acontecem. O espaço também tem uma função muito importante, que é quase um papel social ligado ao escapismo. As pessoas acabam descarregando ali suas frustrações, seus anseios, seus devires, sua vontade de ser outro. Por isso, eu acho que um espaço, seja ele um boteco, uma casa de shows ou qualquer coisa que crie uma alteridade, é sim uma oportunidade de se libertar do seu ego, de se libertar daquela postura profissional ou do papel que você representa socialmente e de se transformar em uma outra pessoa que o seu desejo exige que você seja. Nesse momento, a tua relação com o entorno, seja com olugar em si, com sua arquitetura e etc., também é ressignificada. Eu não sei se estou respondendo à sua pergunta, mas eu acho que tem a ver, sim.

Uma cidade é composta de diversos recortes de realidade, o que impossibilita que uma homogeneidade impere. Como identificar a localização desses chamados ‘recortes’ e criar um espaço capaz de proporcionar a possibilidade de novos direcionamentos?

Sempre me pergunto o que é ser paulistano. Acho que o mais importante é isso, já que encontrar uma boa pergunta é tão ou mais importante que o caminho que a boa pergunta te aponta, ou do que a resposta propriamente dita. O que significa ser paulistano? Nós sempre fomos definidos pelo excesso de trabalho, porque somos workaholics ou porque nos satisfazemos em espaços fechados pelo fato de vivermos em uma cidade sem horizonte. Eu acho que São Paulo tem uma particularidade que é quase única, ela é uma cidade voltada para dentro, ela funciona por dobras, por paisagens que são humanas. Então, minha vontade quando eu encontro um lugar é achar um pedaço de identidade que forme uma peça muito pequena no quebra-cabeça do que é ser paulistano e atualizá-lo no presente. Ou seja, respeitar o passado e projetá-lo no futuro, aplicando o espírito do tempo, seja por tecnologia, seja por curadoria ou por alguma coisa que está fermentando no que antes era o underground — embora não exista mais essa divisão categórica underground/mainstream. Isso é uma maneira de eu encontrar um local que era importante para uma parcela dos paulistanos num determinado período histórico, que representa um pedaço da nossa identidade e que pode criar um laço com esse passado e assim nos definir. Esse respeito com a história é importante por um lado, mas ao mesmo tempo eu não gosto de emular um lugar, de recriá-lo tal como ele foi. Eu gosto de interpretar um espaço histórico no presente e eu acho que isso acaba falando sobre o que é o paulistano, porque nós somos compostos de espaços arquitetônicos e paisagens humanas.

Muitos poetas descrevem a poesia em si como um exercício de ver beleza nos simples atos cotidianos, nos menores detalhes da vida e de certa forma é isso que você faz ao perceber a potência de certos lugares. O que é preciso para identificar o belo nas pequenas coisas, naqueles recantos que quase sempre nos passam despercebidos?

Na verdade, São Paulo é uma cidade na qual você precisa de um certo olhar calejado para encontrar esse belo. O belo às vezes emerge na feiura. Eu, por exemplo, não gosto do belo clássico, simétrico, do belo que emula a natureza. Eu gosto da emergência de um recorte de belo que, ao primeiro olhar, é feio, entende? Eu acho que para isso é preciso certa maturidade no olhar. Eu estudei bastante a história da arte, sempre me interessei por arquitetura, fui estudar ciências sociais por um tempo e tudo isso acabou contribuindo para que eu conseguisse notar algo em coisas que no primeiro olhar podem ser consideradas feias, mas que no segundo revelam uma personalidade ou característica que eu chamo de belo. Eu não sei se isso tem a ver com poesia, mas eu acho que São Paulo só é suportável quando admitimos que ela é feia e que ela é desagradável em certos momentos, mas que é exatamente por isso que ela tem uma personalidade que lhe é única e que você não encontra em nenhuma outra cidade do mundo.

Cidades como São Paulo estão repletas de intervenções criativas, nos prédios, nos muros, etc. Além disso, temos empreendimentos como os seus, que são capazes de propiciar experiências estéticas aos seus frequentadores. Como você vê essa junção entre a criatividade e a cidade?

O fato é que São Paulo é uma cidade que foi construída meio que como um palimpsesto. Foi construída em camadas, uma em cima da outra e se expandindo para os lados sem muito planejamento, sem muita ordem racional. Esse caos, que é característico de São Paulo, acaba criando não só uma cidade quase absurda (sem cartão postal, sem horizonte e que faz com que você se sinta perdido o tempo inteiro), mas também essa emergência do impossível. O pixo e o grafite são gritos do absurdoque a cidade é, como se eu tivesse que marcar a cidade para que ela seja minha de determinada maneira. Expressões artísticas como o pixo e o grafite só podem existir em cidades como São Paulo, porque eles de certa formam estetizam aquilo que em teoria é feio, a exemplo dessa desordem construtiva que é nossa herança histórica. A retomada das ruas por diferentes espasmos de arte, se é que dá para chamar assim, é uma resposta ao ensimesmamento, a essa alienação com o entorno, que é tão presente nessa cidade que desde o fim da década de 60 e começo da década de 70 tinha e ainda tem o shopping center como grande espaço de convívio.

Me parece que você tem uma relação de desdobramento de si mesmo nos espaços que você cria, porque em muitos deles estão presentes coisas que fazem parte da sua personalidade, da sua casa e que representam a sua visão de mundo. Isso me faz pensar na necessidade que nossos antepassados tiveram de passar de coletores, caçadores nômades a sedentários, os quais não só se assentavam em determinados lugares e fixavam residência, mas que também faziam com que esses mesmos espaços ficassem cheios de personalidade. O que essa “domesticação” do espaço representa para você?

Quando eu estou montando um lugar, eu penso muito mais no meu desejo, em como eu vejo aquele local; também penso naquilo que eu preciso, naquilo que eu não sou atendido enquanto consumidor, no que eu acho bonito, enfim. Quando você está montando alguma coisa, tem que ser uma expressão de si, sabe? Eu acho muito legal quando, independentemente do lugar ser estetizado demais para o meu gosto ou não, eu entro e vejo inteligência na arquitetura, vejo que alguém pensou muito à respeito daquele espaço, que se preocupou com aquilo, que debateu, que colocou ali coisas que aprendeu ao longo da vida. É isso que empresta personalidade a um estabelecimento, quando você vê de certa forma a cristalização da psique do dono dele. Isso acaba deixando uma marca que suja a pasteurização dos Fast Food, dos lugares corporativos e que nesse sentido te conecta com o lado humano do teu cliente.Existe uma conexão feita de humano para humano quando você cria um espaço com suas preocupações e com suas questões estéticas. Além de tudo, também é uma questão de sobrevivência do negócio para mim. Quando eu uso a taxidermia (como acontece no Lions), eu quero dizer que ela pode ser uma forma de expressão artística, pois sei que aquilo vai impactar muito mais do que um papel de parede que não vai criar nenhum choque, que não vai criar nenhum tipo de incômodo e que vai ser prontamente esquecido depois que o cliente sair de lá. Isso acaba sendo uma questão muito mais de sobrevivência e de, por que não dizer, poder expressar quem eu sou, de poder mostrar ao mundo uma parte de mim, do que domesticar o espaço em si. Tem muito mais a ver com usá-lo como um suporte para os meus questionamentos.

É possível uma cidade como São Paulo possuir uma identidade, uma cara, ou ela será sempre uma sobreposição de recortes de realidade que varia de acordo com a região de onde se olha?

Eu costumo dizer que São Paulo não existe, que ela é uma abstração, com várias cidades colapsadas uma dentro da outra, cada uma com seu centro. É por isso que eu não acredito que ela exista necessariamente muito além do lado geopolítico ou da abstração, ela nunca vai ter uma única identidade. A identidade que estou tentando construir pra ela, por exemplo, é uma identidade do Centro ou da região Oeste, que nunca vai falar com Jabaquara ou com parte da Zona Sul, mesmo porque essas regiões são relativamente mais novas dentro da cidade. São Paulo surgiu no Centro, depois foi para a Paulista e assim começou a se expandir para as bordas. Eu acho que qualquer identidade paulistana tem que passar pelo Centro, porque foi ali que a cidade começou, é ali que está a nossa carga histórica. Embora essa carga histórica traga coisas nada agradáveis. Eu acho muito triste, por exemplo, que a gente enalteça a figura do Bandeirante, que é uma figura e uma metáfora que usamos muito em São Paulo, quando esse mesmo Bandeirante foi um genocida. Por isso eu prefiro repensar a cidade por outro lado, por outro viés que não necessariamente o do Bandeirante, que é a figura clássica.

Há uma máxima que diz que a sorte sorri aos audaciosos, até que ponto isso é verdade?

Facundo Guerra: Na medida em que você se expõe ao mundo, existem muitas coisas com as quais você acaba perdendo tempo e que, no fim das contas, não dão em nada. Mas a sorte, ou a quantidade de acasos felizes ou de encontros felizes que você acaba tendo por conta dessa medida de exposição maior ao mundo, aumenta. Eu não acredito muito em sorte, mas acredito que no final das contas a máxima é verdadeira. A quantidade de acasos felizes que acabam se transformando em projetos e coisas legais para se fazer é diretamente proporcional à quantidade de vezes que você se arrisca e à exposição maior que você tem ao acaso.

 

Criar espaços onde as pessoas possam se libertar do ritmo frenético do cotidiano tem a ver com uma busca pela transformação da relação entre o homem e o seu entorno?

Quando você monta um espaço, você está lidando com pulsões muito fortes de vida e morte. Tem muita gente que nasceu por causa de um das casas que eu montei e tem muita gente que também acabou saindo de um clube e acabou batendo o carro porque estava saindo de uma delas embriagado. Então, você acaba criando um espaço onde os dramas humanos de determinada maneira, acontecem. O espaço também tem uma função muito importante, que é quase um papel social ligado ao escapismo. As pessoas acabam descarregando ali suas frustrações, seus anseios, seus devires, sua vontade de ser outro. Por isso, eu acho que um espaço, seja ele um boteco, uma casa de shows ou qualquer coisa que crie uma alteridade, é sim uma oportunidade de se libertar do seu ego, de se libertar daquela postura profissional ou do papel que você representa socialmente e de se transformar em uma outra pessoa que o seu desejo exige que você seja. Nesse momento, a tua relação com o entorno, seja com olugar em si, com sua arquitetura e etc., também é ressignificada. Eu não sei se estou respondendo à sua pergunta, mas eu acho que tem a ver, sim.

Uma cidade é composta de diversos recortes de realidade, o que impossibilita que uma homogeneidade impere. Como identificar a localização desses chamados ‘recortes’ e criar um espaço capaz de proporcionar a possibilidade de novos direcionamentos?

Sempre me pergunto o que é ser paulistano. Acho que o mais importante é isso, já que encontrar uma boa pergunta é tão ou mais importante que o caminho que a boa pergunta te aponta, ou do que a resposta propriamente dita. O que significa ser paulistano? Nós sempre fomos definidos pelo excesso de trabalho, porque somos workaholics ou porque nos satisfazemos em espaços fechados pelo fato de vivermos em uma cidade sem horizonte. Eu acho que São Paulo tem uma particularidade que é quase única, ela é uma cidade voltada para dentro, ela funciona por dobras, por paisagens que são humanas. Então, minha vontade quando eu encontro um lugar é achar um pedaço de identidade que forme uma peça muito pequena no quebra-cabeça do que é ser paulistano e atualizá-lo no presente. Ou seja, respeitar o passado e projetá-lo no futuro, aplicando o espírito do tempo, seja por tecnologia, seja por curadoria ou por alguma coisa que está fermentando no que antes era o underground — embora não exista mais essa divisão categórica underground/mainstream. Isso é uma maneira de eu encontrar um local que era importante para uma parcela dos paulistanos num determinado período histórico, que representa um pedaço da nossa identidade e que pode criar um laço com esse passado e assim nos definir. Esse respeito com a história é importante por um lado, mas ao mesmo tempo eu não gosto de emular um lugar, de recriá-lo tal como ele foi. Eu gosto de interpretar um espaço histórico no presente e eu acho que isso acaba falando sobre o que é o paulistano, porque nós somos compostos de espaços arquitetônicos e paisagens humanas.

 

Muitos poetas descrevem a poesia em si como um exercício de ver beleza nos simples atos cotidianos, nos menores detalhes da vida e de certa forma é isso que você faz ao perceber a potência de certos lugares. O que é preciso para identificar o belo nas pequenas coisas, naqueles recantos que quase sempre nos passam despercebidos?

Na verdade, São Paulo é uma cidade na qual você precisa de um certo olhar calejado para encontrar esse belo. O belo às vezes emerge na feiura. Eu, por exemplo, não gosto do belo clássico, simétrico, do belo que emula a natureza. Eu gosto da emergência de um recorte de belo que, ao primeiro olhar, é feio, entende? Eu acho que para isso é preciso certa maturidade no olhar. Eu estudei bastante a história da arte, sempre me interessei por arquitetura, fui estudar ciências sociais por um tempo e tudo isso acabou contribuindo para que eu conseguisse notar algo em coisas que no primeiro olhar podem ser consideradas feias, mas que no segundo revelam uma personalidade ou característica que eu chamo de belo. Eu não sei se isso tem a ver com poesia, mas eu acho que São Paulo só é suportável quando admitimos que ela é feia e que ela é desagradável em certos momentos, mas que é exatamente por isso que ela tem uma personalidade que lhe é única e que você não encontra em nenhuma outra cidade do mundo.

Cidades como São Paulo estão repletas de intervenções criativas, nos prédios, nos muros, etc. Além disso, temos empreendimentos como os seus, que são capazes de propiciar experiências estéticas aos seus frequentadores. Como você vê essa junção entre a criatividade e a cidade?

O fato é que São Paulo é uma cidade que foi construída meio que como um palimpsesto. Foi construída em camadas, uma em cima da outra e se expandindo para os lados sem muito planejamento, sem muita ordem racional. Esse caos, que é característico de São Paulo, acaba criando não só uma cidade quase absurda (sem cartão postal, sem horizonte e que faz com que você se sinta perdido o tempo inteiro), mas também essa emergência do impossível. O pixo e o grafite são gritos do absurdoque a cidade é, como se eu tivesse que marcar a cidade para que ela seja minha de determinada maneira. Expressões artísticas como o pixo e o grafite só podem existir em cidades como São Paulo, porque eles de certa formam estetizam aquilo que em teoria é feio, a exemplo dessa desordem construtiva que é nossa herança histórica. A retomada das ruas por diferentes espasmos de arte, se é que dá para chamar assim, é uma resposta ao ensimesmamento, a essa alienação com o entorno, que é tão presente nessa cidade que desde o fim da década de 60 e começo da década de 70 tinha e ainda tem o shopping center como grande espaço de convívio.


Me parece que você tem uma relação de desdobramento de si mesmo nos espaços que você cria, porque em muitos deles estão presentes coisas que fazem parte da sua personalidade, da sua casa e que representam a sua visão de mundo. Isso me faz pensar na necessidade que nossos antepassados tiveram de passar de coletores, caçadores nômades a sedentários, os quais não só se assentavam em determinados lugares e fixavam residência, mas que também faziam com que esses mesmos espaços ficassem cheios de personalidade. O que essa “domesticação” do espaço representa para você?

Quando eu estou montando um lugar, eu penso muito mais no meu desejo, em como eu vejo aquele local; também penso naquilo que eu preciso, naquilo que eu não sou atendido enquanto consumidor, no que eu acho bonito, enfim. Quando você está montando alguma coisa, tem que ser uma expressão de si, sabe? Eu acho muito legal quando, independentemente do lugar ser estetizado demais para o meu gosto ou não, eu entro e vejo inteligência na arquitetura, vejo que alguém pensou muito à respeito daquele espaço, que se preocupou com aquilo, que debateu, que colocou ali coisas que aprendeu ao longo da vida. É isso que empresta personalidade a um estabelecimento, quando você vê de certa forma a cristalização da psique do dono dele. Isso acaba deixando uma marca que suja a pasteurização dos Fast Food, dos lugares corporativos e que nesse sentido te conecta com o lado humano do teu cliente.Existe uma conexão feita de humano para humano quando você cria um espaço com suas preocupações e com suas questões estéticas. Além de tudo, também é uma questão de sobrevivência do negócio para mim. Quando eu uso a taxidermia (como acontece no Lions), eu quero dizer que ela pode ser uma forma de expressão artística, pois sei que aquilo vai impactar muito mais do que um papel de parede que não vai criar nenhum choque, que não vai criar nenhum tipo de incômodo e que vai ser prontamente esquecido depois que o cliente sair de lá. Isso acaba sendo uma questão muito mais de sobrevivência e de, por que não dizer, poder expressar quem eu sou, de poder mostrar ao mundo uma parte de mim, do que domesticar o espaço em si. Tem muito mais a ver com usá-lo como um suporte para os meus questionamentos.


É possível uma cidade como São Paulo possuir uma identidade, uma cara, ou ela será sempre uma sobreposição de recortes de realidade que varia de acordo com a região de onde se olha?

Eu costumo dizer que São Paulo não existe, que ela é uma abstração, com várias cidades colapsadas uma dentro da outra, cada uma com seu centro. É por isso que eu não acredito que ela exista necessariamente muito além do lado geopolítico ou da abstração, ela nunca vai ter uma única identidade. A identidade que estou tentando construir pra ela, por exemplo, é uma identidade do Centro ou da região Oeste, que nunca vai falar com Jabaquara ou com parte da Zona Sul, mesmo porque essas regiões são relativamente mais novas dentro da cidade. São Paulo surgiu no Centro, depois foi para a Paulista e assim começou a se expandir para as bordas. Eu acho que qualquer identidade paulistana tem que passar pelo Centro, porque foi ali que a cidade começou, é ali que está a nossa carga histórica. Embora essa carga histórica traga coisas nada agradáveis. Eu acho muito triste, por exemplo, que a gente enalteça a figura do Bandeirante, que é uma figura e uma metáfora que usamos muito em São Paulo, quando esse mesmo Bandeirante foi um genocida. Por isso eu prefiro repensar a cidade por outro lado, por outro viés que não necessariamente o do Bandeirante, que é a figura clássica.

Como você vê a relação entre o homem e a cidade? Quem é responsável pela transformação de quem?

O homem é material, enquanto uma cidade é abstração. Na verdade, ninguém mora numa cidade. Nós moramos em poucas ruas, em poucos quarteirões próximos de nossas casas. Para mim, Cidade Tiradentes, Itaim, Jabaquara e Jardins não estão na “minha” São Paulo. O que quero dizer é que esses lugares são partes de São Paulo que eu não frequento e que eu nunca vou frequentar, porque eu me satisfaço com o centro e com um pedaço da Zona Oeste. O homem, o humano que ocupa um determinado espaço físico, vai ser sempre o material, enquanto a cidade vai ser sempre uma abstração. Essa relação entre cidade e política, é a mesma que existe entre quarteirão e micropolítica. Para o homem é mais importante o bairro, o microterritório, o recorte de cidade que ele ocupa do que a cidade como um todo. Da mesma forma, eu acredito que é mais importante para o homem a micropolítica do que a política com ‘p’ maiúsculo. São poucos os homens que conseguem transformar uma cidade. Acredito que o homem, com ‘h’ minúsculo mesmo, aquele que é o material humano, ele consegue transformar a sua rua, a sua casa, o seu bairro e é assim que essa relação acaba se dando.

Uma das premissas do Romantismo do século XVIII era a de que a natureza seria o refúgio ideal para o espírito do homem; um lugar acolhedor e dotado de transcendência. Com o passar do tempo, essa visão foi se modificando até chegarmos ao quadro que vemos hoje: de um lado, aqueles que defendem o progresso acima de tudo e, de outro, aqueles para quem as cidades como atualmente conhecemos não deveriam existir. A sua preferência pela paisagem humana se dá em oposição à paisagem natural ou é uma forma de buscar uma síntese de ambas?

Eu não consigo ver o humano descolado da natureza. Eu vejo a paisagem humana como uma camada da natureza. É que São Paulo ficou tão árida e nesse sentido a gente domesticou tanto a cidade, que a natureza ficou ou sublimada ou virou uma espécie de transcendência, de entidade de desejo. Sendo assim, a única natureza que nos restou como cidade foi a humana mesmo. Eu não sou um cara muito dado a abraçar árvores ou a defender causas ecológicas. O que eu faço é tentar deixar a menor quantidade de pegadas e impressões digitais no mundo. Eu não sou um cara extremamente consumista e tento, na medida do possível, reduzir o impacto da minha existência no meu entorno. Mas isso porque eu me vejo como um habitante circunstancial de um espaço, coisa que a maioria das pessoas não enxerga, porque elas não possuem uma visão de longo ou médio prazo; conseguem ver apenas no seu curtíssimo espaço e são meio extrativistas. Coisa que eu até entendo, porque quando a gente vive numa sociedade onde a sobrevivência é muito mais importante do que a existência, você acaba tendo que explorar todos os recursos que estão à sua volta parapoder existir.

A memória de uma cidade é normalmente constituída de fatos registrados em mídias como jornais, fotografias, revistas, noticiários de TV e assim por diante, ficando algo muito voltado para o macro. Você acha que há espaço para traçar novas perspectivas sobre ela a partir de uma cartografia do desejo? Pergunto isso porque seus estabelecimentos fazem alusões à ideia de fetiche.

Meus espaços fazem uma alusão ao fetiche porque eu monto estabelecimentos comerciais. Eu não sou artista, não sou político, não sou mecenas, eu sou só um botequeiro metido a besta. Se eu estou falando de desejo humano, eu estou linkando com uma coisa que é muito primitiva e que é muito fácil de você fazer uma conexão. O cara que frenquenta o Z Carniceria ou Lions, por exemplo, vai sentir sempre um incômodo ou uma epifania estética, mas ele não vai sair dalí sem algum tipo de impacto e quando eu faço esse impacto acontecer, eu acabo me distanciando e me diferenciando dos meus concorrentes, talvez conseguindo fazer com que esse cliente volte ao meu estabelecimento. Essas alusões ao fetiche são só por conta disso, porque eu estou me conectando com o outro. Eu sou um comerciante, antes de mais nada. Eu quero deixar isso bem claro. Eu não sou artista plástico e não tenho qualquer tipo de aspiração maior do que vender cerveja. O que eu faço é recorrer a estratégias que vão acabar me fazendo ser mais bem sucedido e, portanto, menos perecível e mais perene que meus concorrentes.

Deixando de lado a parte pragmática de ser um empreendedor, você já falou em outras entrevistas sobre o drama humano que também está por trás disso, sobre como a vida e a morte se cruzam horizontalmente nesses ambientes. Isso ainda continua fascinar você? Quais são as ligações conceituais, estéticas e filosóficas que podem ser feitas entre os seus negócios?

Todos eles possuem relação com aquela pergunta fundamental sobre o que é ser paulistano e todos eles têm como fio condutor estético o fetiche. No caso do Riviera é o livro, que acabou virando nos dias de hoje, felizmente ou infelizmente, um objeto de fetiche em tempos de leitores digitais, de kindle e tudo mais, ou mesmo a esquerda que tem um caráter de fetiche que está no campo do desejo (a esquerda foi completamente diluída e hoje não faz mais sentido falar de direita e esquerda); o Z Carniceria, a carne; Cine Joia, o diamante; o Yatch Club, a âncora, o mar; o Lions, o clube de cavalheiros; o PanAm, o tempo áureo das companhias aéreas da década de 60. Cada um deles remete ao tempo em que se transava nos banheiros dentro dos aviões, o tempo em que se fumava, o tempo em que se tinha uma relação mais humana com a aviação e não com o transporte de gado, como acontece hoje. Todos eles estão no campo do desejo porque, como eu havia dito, é mais fácil ligar o espaço com as pessoas através do desejo.

A sua relação com a noite é quase científica, pois sua vida se distingue um pouco do que ela representa. Pode-se dizer que, de modo particular, a noite é um objeto de pesquisa ao qual você perscruta através de uma observação distanciada?

Eu acho que sim, que você está certo. Eu sempre construí palco, mas sou um observador distante, eu consigo ver a noite com uma relação um pouco mais fria e por isso eu sou bom naquilo que eu faço, porque eu não tenho um envolvimento passional com a noite. Não é nela que eu faço o meu desejo escoar, entende? A minha aproximação é mesmo meio científica. Eu monto palco para os outros, para que outras pessoas possam ver e apenas eventualmente eu vou como cliente. Eu sei montar palco e ter essa relação de espectador. Quando você tira a relação íntima e pessoal com um local, passando a observar friamente um pouco de fora, você acaba resolvendo problemas de uma maneira muito melhor do que talvez um DJ apaixonado que montou um clube resolveria.

Trazer novas possibilidades para dentro de um território exige o conhecimento do passado, da trajetória do mesmo, mas sem se prender demais a ele e ampliando suas possibilidades. E é assim que você e seus sócios no Grupo Vegas costumam operar em todas as casas que possuem. Por outro lado, existem lugares onde essa atenção e cuidado são negligenciados a favor de “inovações” que parecem ter sido criadas a partir de um Fiat Lux, apagando qualquer traço de sua vida anterior. Inovar a qualquer custo é uma ideia deturpada de empreendimento ou uma saída?

Inovar é uma condição essencial para você montar alguma coisa. Não faz sentido empreender se for pra fazer uma emulação do passado ou pra montar algo que alguém já fez. Uma vez que você encontra a sua pergunta ou que você tem um incômodo que precisa ser solucionado, empreender tem que ser construir uma resposta para esse problema. Se você não tem um problema para ser resolvido ou se você não tem uma resposta para encontrar no momento em que você começa a empreender, não faz muito sentido você abrir um lugar ou lançar uma ideia. Eu pelo menos penso assim, eu não montaria um Riviera no Shopping JK nem nada parecido. Prefiro montar negócios novos, que façam sentido, que respondam questões novas e que me motivem a encontrar sempre novas respostas.

 
Jocê Rodrigues da revista Vermelho! No Brazil Post.
 

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