Um país doce, mas agora com menos açúcar

Um levantamento feito em 2017 mostrou que os portugueses consomem, em média, o equivalente a 16 pacotinhos de açúcar por dia, algo como 35 quilos por ano. Naquele ano, uma das frentes para combater essa doce ameaça foi a implementação de uma taxa sobre as bebidas açucaradas, o que encareceu bem o refrigerante. Como mero observador e bom frequentador das mesas portuguesas, posso dizer que pouco vejo das “colas”, guaranás (sim, aqui tem o nosso em alguns lugares, daquela marca que a gente gosta) e refrigerantes de limão. E quando tem é a versão bomba de açúcar mesmo, pouco ou nada de versões light ou zero.

Também as gôndolas dos supermercados trazem muito mais espaço para os sucos e chás em caixinha (bem açucarados também, diga-se de passagem). Já o vinho… bom, não há mesa sem uma tacinha, um “pichet” de vinho da casa ou uma boa garrafa de tinto, branco ou rosê. Questão cultural? Pode ser. Mas tomar um vinhozinho pode sair mais barato do que abrir uma latinha de refrigerante. E, cá entre nós, um polvo a lagareiro ou uma deliciosa posta de bacalhau não “orna” muito com as “colas”.

E não é só nos bares e restaurantes que o cerco se fecha. Para preparar a lancheira do meu filho, orientações expressas da escola: evite os sucos em caixinhas, bolos industrializados, doces em geral e rebuçados (como eles chamam as balas por aqui). A professora vez ou outra até dá uma checada nas lancheiras e os pais mais “formiguinhas” podem receber lembretes para evitar o açúcar nos lanchinhos dos miúdos. Por essas e por outras (provavelmente, mais pelo impacto no bolso causado pela taxa nas bebidas açucaradas), estima-se que já houve uma redução anual de mais de 5 mil toneladas na quantidade de açúcar consumido pelos portugueses desde a implementação das medidas restritivas. Dados do governo mostram que as bebidas com mais de 8 gramas de açúcar por 100 mililitros, por exemplo, tiveram o consumo reduzido pela metade. Ainda assim, a Ordem dos Nutricionistas aponta que quase um terço das crianças portuguesas apresenta excesso de peso.

Para preparar a lancheira do meu filho, orientações expressas da escola: evite os sucos em caixinhas, bolos industrializados, doces em geral e rebuçados. Foto: Getty Images.

O açúcar, porém, não é o único vilão na dieta portuguesa. O sal, ao contrário do que eu imaginava, também está na mira. Não que eu achasse o sal em excesso algo saudável. Mas explico a minha quase surpresa: diferente do que a gente está acostumado no Brasil, onde há pacotinhos de sal ou saleiros em toda e qualquer mesa, todo e qualquer balcão de padaria, aqui o sal não fica ao alcance das mãos. Se quiser, tem que pedir. E praticamente não vejo ninguém cobrindo a batata frita de sal, por exemplo, coisa que para nós é quase um hábito. Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) indicam, no entanto, que os portugueses consomem mais do que o dobro do sal recomendado pela organização, chegando a superar as 10 gramas por dia. Mas se a fonte não são os saleiros na mesa, de onde vem tanto sal?

Para um país com cerca de 2 milhões de hipertensos, uma dieta rica em sal é como uma bomba relógio. Foto: Notícias ao Minuto.

O vilão, apontam os especialistas, está escondido nos pães, nas sopas e nos deliciosos queijos portugueses, três itens que praticamente fazem parte do cardápio diário por aqui. Para um país com cerca de 2 milhões de hipertensos, uma dieta rica em sal é como uma bomba relógio. O consumo de pão é tão grande aqui em Portugal (média de 200 gramas por pessoa, por dia. Algo como quatro dos nossos pãezinhos franceses aí do Brasil todos os dias) – e as receitas normalmente trazem tanto sal – que só com o pão já quase se chega ao valor máximo recomendado. Não por acaso criou-se até uma meta específica para as padarias, que passarão a ter um selo de qualidade se venderem pães com uma grama de sal por 100 gramas. Hoje, o limite permitido é de 1,4 gramas a cada 100 gramas de pão. O limite de uma grama já é adotado em alguns outros países da Europa e, espera-se, Portugal deve chegar lá até 2021.

O vilão, sal, está escondido nos pães, nas sopas e nos deliciosos queijos portugueses. Foto: Divulgação.

Mas culpar só aquele caldo verde, os pães deliciosos, os queijos, os pastéis de nata e todas outras delícias da culinária portuguesa não é justo. O bom e velho alimento industrializado – aqueles pacotinhos de batata frita, as barras de chocolate e afins – ajudam, e muito, a piorar o cenário. A boa notícia é que nesta última semana as autoridades portuguesas assinaram um acordo com sete associações da indústria de alimentos para reduzir as quantidades de sal, açúcar e gordura de uma série de alimentos, a exemplo do que tem sido feito em várias partes do mundo. Serão dois mil produtos que devem representar ao menos 80% do total das vendas das categorias acordadas. Vão ter menos açúcar os cereais matinais, os iogurtes, os achocolatados, os sucos e os refrigerantes. Até 2022, a meta é baixar ao menos 10%. O sal e a gordura também serão reduzidos, principalmente nas batatinhas e outros snacks, nos pães, sopas e refeições industrializados, em algo em torno de 10 a 12%.

Delicie-se com uma generosa posta de bacalhau, com um fabuloso polvo, um cozido à portuguesa. Foto: O Especialista.

Nada disso, porém, deve tornar a experiência gastronômica em Portugal um fardo de culpa. Continue a se deliciar com as natas (ok, basta uma pra acompanhar o café) ou com os ovos moles de Aveiro. Não deixe de aquecer a alma com um bom caldo verde. Delicie-se com uma generosa posta de bacalhau, com um fabuloso polvo, um cozido à portuguesa… Se for para abrir mão de alguma coisa, que seja do refrigerante, dos pacotes de biscoito recheado e de salgadinhos. Encare feliz um queijo da Serra da Estrela ou do Azeitão, derretendo sobre o pão de 1,4 gramas de sal… Que me perdoem os mais radicais, mas acho que, com moderação, todos os prazeres da mesa são permitidos!***

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Marcos Freire mora com a família em Ovar, Portugal, pequena cidade perto do Porto, conhecida pelo Pão de Ló e pelo Carnaval. Marcos é jornalista, com passagens pelas principais empresas e veículos de comunicação do nosso país. Escreve quinzenalmente no São Paulo São.

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