Vinil celebra os dez anos do ‘Pagode da 27’

Sobre o manto vermelho e branco de lona a chuva cai copiosa e fria. Na casa de dona Dé, onde o sofá divide espaço com a pia e o fogão, os olhos do marido estão colados na tela desproporcionalmente grande da tevê. No pequeno quarto compartilhado entre o casal e as filhas, as adolescentes se arrumam para o culto. É domingo, dia de clássico Corinthians e Palmeiras, e ninguém vai arredar pé antes do fim da partida.

Na rua, alheios ao tempo pouco convidativo, músicos capricham na arrumação das mesas, posicionam as caixas de som, desembaraçam os fios dos microfones. Às 4 da tarde começa um ritual sagrado, jamais interrompido ao longo dos últimos dez anos. Um rito de celebração e resistência em que o samba de batida forte e contagiante, inspirado nos grandes mestres, mas com preocupação de construir a própria história, é soberano. 

Nenhum dos dez integrantes do Pagode da 27, no Grajaú, se preocupa com a chuva que engrossa. Sabem que logo dona Dé e outros moradores desligam a tevê e se unem à plateia vinda de vários bairros para cantar em coro os sambas nascidos ali. No coração da quebrada. “Conseguimos fazer o Grajaú se tornar referência pelo lado bom”, diz Nenê Partideiro, pandeirista, compositor e defensor desvelado do grupo fundado em 2005. “Começou como reunião de amigos. Um chamou o outro, encheu. Então vimos que sem aparelhagem ninguém ouvia nada.”

Segundo Jefferson Santiago, responsável pela marcação do ritmo no tam-tam, o Pagode da 27 tornou-se a principal referência dessa região da zona sul que só frequentava os jornais por causa dos altos índices de violência. “Antes, ninguém assumia que morava aqui.” Nenê Partideiro usa a lógica para rebater a ladainha de quem só fala do bairro para ressaltar a criminalidade. “Não é que o Grajaú seja perigoso. O mundo é perigoso. As pessoas são perigosas. Mas, quando o sujeito vem para o samba e vê que todos são de paz, a coisa muda.”

Nascido e criado na quebrada, Nenê fez do Pagode da 27 sua segunda casa. “Tudo o que aprendi foi aqui, a compor inclusive.” É dele, em parceria com Ricardo Rabelo e Rogério Borges, o samba que dá nome ao segundo álbum do grupo, Filhos da Favela, de 2013. À melodia dolente junta-se a letra de exaltação: “Favela é reduto de poetas/Entre becos e vielas/Poesias a Deus dará”. Ele é autor de muitas letras. “Dou sorte com minhas canetadas. Poeta? É muita coisa pro meu currículo.” O partideiro faz questão de dizer que o sentimento maior no “berço da simplicidade” é orgulho. “Não quero sair daqui.” 

Criolo, o filho mais famoso do Grajaú, não mora mais na zona sul, mas não abandonou as raízes. “Ele está sempre aqui”, conta Nenê. “A gente muda de espaço físico, mas o coração não”, afirma o rapper, que sugeriu aos amigos celebrar com um vinil a década de atuação. “É um registro que te põe na história. E vinil ninguém pirateia. Foi a realização de um sonho”, diz Nenê.

São 300 cópias de Pagode da 27 – 10 Anos, com repertório dos dois CDs anteriores, a 50 reais cada. O custo de 11 mil reais foi bancado por Criolo. “É uma felicidade e uma honra participar dessa linda história de um grupo de jovens que dedica a vida à arte e ao bairro. Temos uma ligação especial.”

Criolo, o filho famoso do Grajaú, mantém uma ligação afetiva com o Pagode da 27.

“Criolo nos incentivou muito”, afirma Ricardo Rabelo, enquanto dedilha o banjo. Ele conta que, antes de lançar Nó na Orelha, o rapper enfrentou uma crise que quase o levou a desistir da música. “Quando disse que ia parar o chamamos para vir compor conosco e ele se animou. Os próprios caras do hip-hop fechavam as portas. Rola ciúme, não querem dividir a cena.” 

Rabelo tem 40 anos de idade e 20 de banjo e cavaquinho. Estudou dois meses com um professor particular e depois andou sozinho. Canta o entorno, as agruras, as alegrias, os tipos cômicos, o moleque que rola a bola pelas ruas estreitas, onde vagam cães sem dono. Um vizinho que fala demais não escapou da “homenagem”: “Papagaio velho não aprende a falar/Nem adianta ensinar/Conheço seu proceder, malandragem/Tu gosta é de um bom blá-blá-blá”. 

Quando chegou ao Grajaú, vindo de Vila Joaniza, outro extremo da zona sul, se assustou. “Tinha corpo estendido no chão, coisa pesadíssima.” Discriminação racial, crianças abandonadas, jovens sem oportunidade. Nada disso era novidade, mas ele se habituara. Um jeito de se anestesiar para sobreviver. Só percebeu a realidade quando mudou de cenário. “Aqui não chegava cultura. Era como se houvesse um muro. O desânimo dominava, até que começamos o movimento.

O primeiro encontro foi uma festa de aniversário numa laje, e então resolvemos promover as rodas aos domingos. No começo, a turma achava que só valia cantar sambas conhecidos.” Inconformado, propôs aos amigos deixar de lado o papel de narradores e assumir o de criadores. “Cantávamos Nelson Cavaquinho, Cartola, Candeia, Martinho da Vila, Aniceto, Almir Guineto, mas não bastava. E começamos a compor, um jeito de participar da história. Hoje vivo de música, ou melhor, sobrevivo. Aqui a gente sustenta a alma, não o bolso.”

Osvaldinho da Cuíca elogia o papel da periferia na manutenção do samba. Imagem: Video ‘Meu Instrumento’ / Trama Radiola.

O professor de banjo e cavaquinho se vira com aulas particulares e shows com os Batuqueiros da 27, filhote do Pagode da 27. “Nosso movimento cultural não entra em lugares onde a musicalidade e a ideologia não tenham a ver com nossa cultura, onde o comércio esteja acima da arte. Não adianta falar uma coisa e fazer outra.” O microfone por onde ecoa o samba influenciado pelo Fundo de Quintal, que no fim dos anos 1970 inovou a batucada ao introduzir o repique de mão e o banjo, serve aos propósitos sociais e de lazer. É por meio dele que a comunidade se expressa, se apoia e se anima. É ali que todos silenciam quando alguém anuncia “atenção, o poeta vai falar”. 

Nosso samba é engajado”, define Rabelo. A vocação de projeto surgiu logo no primeiro, com arrecadação de alimentos. Depois veio a distribuição de brinquedos no Natal e Dia das Crianças e está em estudo proposta de dar aulas de música aos garotos do bairro. “Não deixamos virar assistencialismo. Somos uma ponte entre quem quer ajudar e quem precisa. Conhecemos cada família beneficiada. Não é caridade e não queremos que ninguém se acomode”, frisa Santiago.

Um modo de evitar isso é a oferta de vagas divulgadas periodicamente por agências de emprego. “Quando o povo é ouvido, dá retorno. Muitos que estão no crime entraram porque não tiveram oportunidades. Não é tudo vagabundo. Eu tive a chance de aprender um instrumento, e quem não teve?”, pergunta Rabelo.

“O Pagode da 27 há dez anos constrói uma tradição no Grajaú, leva boa energia, reúne pessoas para celebrar o samba, o bairro, os encontros. Tradição é algo conquistado. Para quem vive lá a mudança é visível. A insistência em promover ações sociais ligadas à arte muda o cenário, dá outro significado. E isso acontecer naquele nosso pedaço é maravilhoso”, diz Criolo. “Respeito muito e acho que o samba da periferia cumpre o papel de manutenção do samba que caberia às escolas. O Pagode da 27 desenvolve um trabalho bonito”, louva o veterano Osvaldinho da Cuíca.  

A força do grupo levou a subprefeitura a transformar a Rua Manoel Guilherme dos Reis, antiga 27, em área de lazer. Aos domingos, correntes e cones de sinalização impedem a circulação de carros em 300 metros da via, espaço que na festa dos dez anos, dia 31 de agosto, reuniu cerca de 3 mil participantes. Na quinta 24, o Pagode da 27 apresenta-se no Sesc Campo Limpo. No repertório, o samba que consideram patrimônio da humanidade. Nas camisetas, o coração rubro símbolo do projeto. “Temos a repercussão do respeito. E é isso o que importa”, resume Santiago. 

Ana Ferraz em Carta Capítal.

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