Cicloturismo na Holanda: a decisão mais difícil e triste da viagem

A fronteira entre a Alemanha e a Holanda, pela costa, é determinada por uma pequena ponte sobre um estreito rio. Não há placas, bandeiras ou qualquer formalidade. De um lado é Deutsch, do outro é Dutch.

Mas uma coisa permaneceu igual: apenas bicicletas e pedestres podem seguir paralelos ao mar, atravessando assim os vários parques nacionais da região. A galera de carro, trailer e moto tem que ir pela estrada! Com isso, percorri, praticamente sozinha, os últimos 20km que me levaram a meu primeiro destino na Holanda: Delfzijl. Uma cidade portuária que começou incrivelmente industrial mas mostrou que tem charme no final.

Logo de cara fiz besteira. Entrei em uma avenida onde bicicletas não podem trafegar. Levei bronca de um motorista. Entendi o recado e estava tentando encontrar um caminho alternativo quando levo a segunda bronca! Poxa, já entendi! Quer que eu faça o quê agora que já estou aqui? Não posso me desmaterializar!

Entrar em um novo país pedalando significa que você não tem muito tempo para se ajustar às normas e regras referentes ao tráfego. É algo que deve acontecer rapidamente. Na Holanda as ciclorrotas não são determinadas por nomes ou números. Há uma numeração, mas ao contrário dos outros países que conheci o número não se refere à rota toda, mas ao exato ponto em que você está. Como se fosse uma enorme rede de metrô e cada estação fosse um número. Você escolhe o destino que pretende seguir e vai literalmente ligando os pontos de acordo.

Comprei um mapa das rotas ciclísticas do norte do país e todos os dias eu fazia uma “cola” com a sequência de números que me conduziriam ao destino pretendido. Isso se mostrou ser um esquema eficaz e não me perdi nenhuma vez.

Os primeiros dias de pedal foram puxados, em distância e condições climáticas. Peguei muita chuva com trechos longos e solitários. Fui contornando o mar por uma região rural e por reservas naturais. Muitas ovelhas, muitas fazendas eólicas e nenhum ser humano ou café com torta para confortar. Olhava aquelas retas intermináveis, a chuva que caía apagando o horizonte e pensava: é pra lá que eu tenho que ir.

Mas o dia mais difícil foi o percorrido entre Harlingen e Stroe. Quando vi a previsão do tempo, do vento e o trecho que teria que atravessar eu soube que seria puxado. Mas nada poderia ter me preparado para o que veio a seguir.

O trecho consistia em chegar e cruzar um dos vários diques do país. Um braço de terra de 37km, apenas com a estrada e a ciclovia. Do meu lado direito, mar aberto. Do lado esquerdo, mar represado.

A chuva seguiu intensa e ininterrupta do começo ao fim. O vento cruel. Por quase todo o percurso eu fui protegida por um morrinho entre a ciclovia e o mar aberto, uma curiosidade geográfica típica desta região. O vento vinha do lado de lá do morrinho e isso amenizou um pouco sua violência. Mas nas passarelas, em que você vai por cima dele, eu tive que descer da bike e empurrar. No início tentei ir pedalando, mas o vento me jogava para o lado da estrada com força tamanha que usar o peso do corpo não estava surtindo efeito, e nestas tentativas consegui apenas quebrar dois raios da roda dianteira.

 

A caminho de Stroe. Foto: Raquel Jorge.

A decisão mais difícil da minha vida

Mas o mais difícil ainda estava por vir. Já havia percorrido 1/3 do braço de terra. O mar, de ambos os lados, parecia inóspito e com cara de poucos amigos. Avistei uma gaivota no chão, linda, enorme. Quando me aproximei achei estranho ela não voar. Ao passar por ela, bem devagar, notei que ela estava muito ferida, com uma das asas totalmente estraçalhada e o dorso bastante danificado, havia muito sangue e algo que só posso deduzir serem fraturas expostas.

Meu coração saltou, continuei pedalando. Comecei a chorar e uma grande discussão se iniciou dentro de mim. Eu ia simplesmente seguir em frente e deixar aquele pequeno ser em agonia? Covarde!! Mas o que eu podia fazer? Pensei no meu kit de primeiros socorros. Queria que meu irmão estivesse comigo. Ele é veterinário e certamente conseguiria ajudá-la. Já eu, não fazia a menor ideia. Pensei na dor daquele animal, na agonia. Ela não podia voar, se alimentar, se proteger. Quanto tempo demoraria para morrer? Seria de fome? De frio? De dor?

Já havia pedalado uns 800 metros, me xingando de todos os nomes por deixar para trás aquela ave ferida. Dei meia volta. E fiz algo que jamais pensei ter coragem de fazer nesta vida: eu a matei.

Segurei seu corpo frágil, acariciei suas penas. Olhei de perto seus ferimentos, seu estado era muito, muito grave. Ela tentou me bicar, mas nem para isso tinha forças, apenas abria de vez em quando o bico para soltar um grito silencioso. Segurei seu pescoço com as mãos e o torci. A sensação de seus ossos se quebrando e o barulho que se seguiu vão me acompanhar eternamente. As lágrimas quentes escorriam, misturando-se com as gotas frias da chuva que caía.

Para meu desespero ela continuou respirando, seus olhos olhavam diretamente para dentro dos meus. Pedi perdão e torci com mais força ainda. Senti seu corpinho se aquietar sob minhas mãos. E finalmente seus olhos se fecharam.

Acho que foi a coisa mais difícil que já fiz na vida. Logo eu, amante dos pássaros. Como pude tirar uma vida com minhas mãos? A vida de um anjo, como tantos que têm me acompanhado nesta viagem.

A cobri com algumas folhas e coloquei flores sobre seu corpo sem movimento. Segui viagem e o vento e o frio deixaram de ser um incômodo. Mas havia um incômodo maior. Fiz a coisa certa? Deveria ter deixado o curso natural do mundo seguir seu rumo? Mas o que há de natural em uma ave selvagem atropelada? Pois só posso deduzir que foi isso que aconteceu. Seus ferimentos certamente foram consequência do choque com algum veículo na estrada. Os 20kms seguintes, com frio, vento e chuva, passei chorando e pedindo desculpas. Nas luvas, o sangue vermelho foi se misturando com a água da chuva até desaparecer completamente.

A forte neblina ia revelando aos poucos o horizonte. Quando avistei a terra novamente senti um enorme alívio. Parei embaixo de uma ponte para olhar o mapa e entender para onde eu precisava ir. Apesar dos impermeáveis eu estava completamente molhada e com muito frio. Já estava perdendo a sensibilidade das mãos e dos pés. Mas como sabia que estava perto não me preocupei. Tirei as luvas ensopadas e segui por mais 9km até chegar no camping de Stroe.

Fui direto para debaixo do chuveiro quente, com roupa e tudo. Tirei tudo e mesmo sabendo que a água estava queimando ainda sentia frio. Demorou uns bons 20 minutos para conseguir aquecer o corpo.

Foi, sem dúvida, o dia mais difícil da viagem. O frio, a chuva, a dor na alma, a lembrança, a consciência da fragilidade e da força que temos quando a situação pede. E a solidão. Foi o dia em que me senti mais só e mais triste.

Esse episódio mudou algo em mim. Na prática a teoria é bem outra. Mas foi o último dia de tristeza e chuva. O dia seguinte amanheceu ensolarado e a beleza e a simpatia da Holanda que conheci a seguir foram o abraço caloroso que eu precisava.

Raquel Jorge, colunista do Vá de Bike, acaba de completar uma cicloviagem de 6.200 km, contornando o Mar do Norte e passando por Noruega, Suécia, Dinamarca, Alemanha, Holanda, Bélgica e Inglaterra. 

 

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