Como a indústria do açúcar comprou cientistas para criminalizar a gordura e esconder os próprios malefícios

 
Você, chef, chefinho ou chefete; “artesão” culinário em horas vagas; jornalista de “tendências gastronômicas” – o que for – que tem uma satisfação pessoal incontrolável quando constata que “o mercado” anda consumindo mais e mais coisas “nossas”, como brigadeiro ou “brigadeiro de colher”; você que ama o “tradicional” pudim de leite condensado e, sem pudor, propaga isso aos quatro ventos; você, que gosta de meter o pé na jaca quando come doce de leite mineiro; você que faz a apologia da rapadura; você, que na sua sociologia de festinha de aniversário, acredita piamente que “brasileiro gosta mesmo é de coisa muito doce”; você – enfim, você – saiba que participa, mesmo que inconscientemente, de uma fraude. E, como tal, também deve ser denunciado.

Aliviar a barra do consumo excessivo do açúcar é um crime de lesa-humanidade. Essa é a conclusão a que se pode chegar ao ler o documento Sugar Industry and Coronary Heart Disease Research. A Historical Analysis of Internal Industry Documents, publicado faz menos de 10 dias pelo JAMA Internal Medicine,  e assinado por vários cientistas (Philip R. Lee, Cristin E. kerns, Laura A. Schimidt, Stanton A. Giantz). Ele mostra como a indústria do açúcar, já nos anos 1960, pagou cientistas para combaterem as conclusões de que a sacarose (aquela do leite condensado, do brigadeiro, etc) era o principal elemento responsável pelas doenças coronarianas. Pagou cientistas para propagarem que as gorduras e o colesterol eram os responsáveis pelas doenças que o açúcar causa.

Imaginar que o açúcar em excesso só “engorda” é de irresponsabilidade gritante. Essa droga (era assim que era classificada quando o Brasil foi transformado no maior produtor mundial de açúcar) é tão nociva quando o tabaco, e se o Ocidente hoje consegue reconhecer o malefício deste último, certamente poderá corrigir o descontrole que incentivou, ao longo de séculos de produção abundante de açúcar.

Foi John Yudkin  que identificou o açúcar como o agente primário das doenças coronarianas. Mas eis que surgiu Ancel Keys  a “criminalizar” as gorduras saturadas.  Ancel Keys, o mesmo que inventou a “dieta mediterrânea” como a coisa mais virtuosa que a humanidade jamais havia provado! Claude Fischer o desmascarou em iniciativa brilhante – mas certamente não sabia dessa opção privilegiada de Ancel pela estratégia da Sugar Research Foundation, pois os documentos probatórios só vieram à luz agora.

O problema não é que os cientistas possam sempre divergir, já que a ciência avança pelo incerto, mas supor que a ciência seja um campo “neutro”. Ela é um território onde também penetram os grandes interesses do capital, aproveitando-se das divergências, e as pessoas ingênuas,  quando são influentes, tem a mesma eficácia em promover esses interesses que as pessoas de má fé.

A gordura serviu de biombo para esconder os malefícios do açúcar. Segundo o estudo da revista de medicina acima indicada, foram US$ 600.000 (US$ 5, 3 milhões de hoje) aplicados pela Sugar Research Foundation para convencer o público, “que nunca teve um curso de bioquímica”…, que o açúcar ajuda todo ser humano a ter as calorias necessárias para o seu dia a dia. E qual a conclusão a que se chega? Que muita gente ingênua devia se tocar e não deitar doutrina sobre nutrição. Deve deixar de ser inocente útil, abstendo-se de dizer o que não sabe. Não deve buscar argumentos em nenhum tipo de “tradição” para posar de defensor do bom e do bem. E reconhecer que à ciência cabe, inclusive, rever os maus hábitos da tradição.  
Enfim, é preciso desconfiar de tudo quando se lida com os outros – mesmo que você seja o tipo de pessoa que só se sente confortável sentada nas almofadas das falsas certezas. Antes de elogiar a tradição, permita-se agir segundo a razão. Procure compreender os argumentos que o contrariam, em vez de seguir de forma carneiril omain stream.

E você, jornalista, menos elogio fácil às “top 10 brigaderias gourmet” e mais pesquisa e reflexão. A cidadania agradecerá a possível longevidade. (E também procure ser mais rápido, pois a imprensa responsável já vem denunciando isso desde que a matéria saiu na revista médica…).

 
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Carlos Alberto Dória, sociólogo e conselheiro do São Paulo São, tem vários livros publicados sobre sociologia da alimentação. Mantém e edita o blog e-BocaLivre.
 

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