Liniker inova a MPB com voz poderosa e mantém viva a tradição de grandes artistas negros

MPB, a icônica sigla que transborda o território brasileiro, ganhou um novo sentido na sexta-feira. Na potente voz de Liniker, ela foi chamada de “Música Preta Brasileira”. Quem o viu no palco do Cine Joia, em São Paulo, não poderia concordar menos. Naquela noite, o mundo não cabia em caixinhas. Ele é negro, toca soul e black music, veste roupas de mulher, seu denso bigode destaca o batom cintilante em seus lábios e sempre faz questão de agradecer com um “obrigada”. Se ele é ela ou ela é ele, Liniker ainda não sabe, mas nós sabemos que estamos diante de um artista raro, daqueles que surgem de tempos em tempos e nos deixam sem ação à primeira audição.

“É um artista de vanguarda”, resume Paula Lima, convidada especial para tocar três músicas com Liniker. Ela foi uma das fontes de inspiração para esse cantor de 20 anos, nascido e criado em Araraquara, interior paulista, em meio a uma família de músicos. Inclua nessa lista inspiradora Clube do Balanço, Cartola, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Etta James, Nina Simone, e já se pode ter uma ideia de quem estamos falando. Porém, pesquise-o no Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira e perderá seu tempo. Sua descrição no Wikipedia é pálida. Mas ele já apareceu em algumas publicações, como El País, Billboard, Rolling Stones e G1. Em tempos de pautar o jornalismo por coisas virais, Liniker é texto de muitos cliques.

Em 15 de outubro, o cantor lançou seu EP “Cru”. Três vídeos foram postados no Youtube e em poucas semanas contavam com mais de um milhão de visualizações – hoje, chegam a quase três milhões. Há dois anos, o artista se apresentava como Liniker Barros e postava covers de Adele e Alicia Keys. Mas nesses clipes, que alcançaram alguns milhares de acessos, só estava a voz e não o sujeito político a que o cantor veio se transformar com o seu primeiro trabalho. O clipe de “Zero”, que hoje encerra seus shows de forma catártica, já prenunciava o vanguardismo do cantor.

A gente fica mordido, não fica?
Dente, lábio, teu jeito de olhar
Me lembro do beijo em teu pescoço
Do meu toque grosso, com medo de te transpassar

Passavam das duas da madrugada da sexta-feira 25 de março quando o DJ Leandro Pardi interrompe a discotecagem da festa Pardieiro e se dirige à plateia do Cine Joia. Reduto de jovens descolados e antenados, de variadas tribos, o antigo cinema que projetava filmes japoneses nos anos 1950 ouve um discurso em nome da liberdade. Casa lotada, mais de 1.200 pessoas abarrotando a lustrosa pista de pisos de taco. Irrompe-se um “Não vai ter golpe, não vai ter golpe”, não acompanhado por pessoas visivelmente contrariadas mas que sabem respeitar a maioria. Pardi não estava ali para falar de política, mas como não falar de política nos dias de hoje? “Fora Cunha”, ele finaliza, antes de chamar a atração da noite.

Liniker sobe ao palco toda de branco. Elegante. Seus cabelos longos estão soltos. Dispensou a saia e o turbante. Veste uma calça boca de sino e um top sensuais, mas com alguma sobriedade. De espalhafatosos, apenas os brincos e o colar. E também sua poderosa voz, de ampla variação melódica. Ora é um vozeirão rouco, ora abusa dos tons agudos. Começa radiante já na primeira canção, “Remonta”. Em pouco mais de uma hora, requebra-se em danças e trejeitos hipnóticos para o público. Cada esqueleto presente no Cine Joia se põe a swingar junto.

Em seu repertório tem “Louise du Brésil”, “Lina X”, “Sem nome mas com endereço”, “Prendedor de varal”, “Caeu”, “Tua”, “Zero” e “Samba Rouco”. A maioria do setlist é formada por composições próprias, que falam do amor e seus dissabores, das questões de gênero e identidade. Toca ainda “Meu guarda chuva”, “Fim de festa” (de Itamar Assumpção e Naná Vasconcelos) e “Fiu fiu”, com a cantora Paula Lima.

Não há falas políticas sobre o momento atual do Brasil. Mas Liniker, batizado assim em homenagem ao jogador inglês Gary Lineker, artilheiro da Copa do Mundo de 1986, demarca suas origens e matrizes africanas e brasileiras o tempo todo, o que faz com que a política ganhe outros contornos.

No show, todos o veneram, mesmo sendo um legítimo artista “negro, pobre e gay”, como faz questão de se identificar nas entrevistas. É porque Liniker invoca algo maior que nos une, enquanto brasileiros de todos os credos, raças e classes sociais. Somos um povo que se constituiu culturalmente pela “música preta brasileira”, erguida por estrelas como Pixinguinha, Clementina de Jesus, Cartola, Jackson do Pandeiro, João do Vale, Wilson Simonal, Toni Tornado, Elza Soares, Gilberto Gil, Jorge Ben, Tim Maia, Milton Nascimento, Djavan, Martinho da Vila, Luiz Melodia, Sandra de Sá, Seu Jorge, Leci Brandão, Emicida, Karol Conka e Tássia Reis.

Se cada vez mais pessoas são capazes de enxergar no brilhante artista Liniker muito mais que um homem vestido de turbante e saia, sinal de que a verdadeira MPB ainda é capaz de nos surpreender.

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 no Farofafá.

 

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