Livro conta história da autoafirmação cultural de jovens das periferias

“Tudo que esses jovens precisam é de uma oportunidade. E essa oportunidade em geral lhes é negada pela orientação autoritária que predomina nas escolas públicas”, disse Amaral à Agência FAPESP.

Os relatos e análises apresentados no livro, que foram objetos da tese de livre-docência da educadora, começaram a ser recolhidos em 2006, quando Amaral, à frente de um grupo de sete pesquisadores da FEUSP, chegou ao Real Parque.

“Fomos chamados por jovens que trabalhavam na região, como estagiárias de uma organização não governamental que concedia bolsas de estudo para a formação de professores. Pressionadas de um lado pelas orientações da ONG e das empresas financiadoras e, de outro, pelas necessidades da comunidade que extrapolavam tais orientações, essas jovens se sentiam angustiadas. Elas pediram que entrássemos na escola, onde os alunos se encontravam em total abandono e por onde mais de uma geração havia passado sem conseguir obter formação alguma. Entramos na escola e nela permanecemos durante três anos, organizando atividades com os estudantes e grupos de estudo com os professores, fazendo plantões nos três turnos, intervindo em classe junto com os professores, em um sistema de aulas compartilhadas”, disse Amaral.

Um dos resultados concretos dessa atividade foi a elaboração de um currículo interdisciplinar calcado na história daquela população. E a construção de um modelo de atuação, que, agora, está sendo estendido a outras instituições de ensino.

“Toda essa pesquisa forneceu os fundamentos para outros projetos que envolvem a docência compartilhada entre professores e artistas populares, que desenvolvemos atualmente em duas escolas das periferias de São Paulo: a Roberto Mange, na Região Oeste, e a Saturnino Pereira, na Cidade Tiradentes. Culturas ancestrais, como o maculelê, e culturas contemporâneas, como o hip-hop, são temas desse trabalho em sala de aula”, disse Amaral.

Os sete pesquisadores da FEUSP distribuíram-se em várias frentes de atividade: um viria a trabalhar com a questão indígena, outro com o hip-hop, outra com a literatura de cordel, que resultou inclusive em um livro premiado (A rima na escola, o verso na história, de Maíra Soares Ferreira).

“Quando chegamos, fizemos um levantamento junto aos jovens, perguntando o que eles esperavam da escola. Ao mesmo tempo, entrevistamos professores e coordenadores, para saber o que estava acontecendo. De um lado, havia professores que apresentaram projetos interessantes, mas que se sentiam totalmente desanimados, pois os projetos sofriam o boicote sistemático da direção da escola. De outro lado, havia alunos que tinham grandes expectativas em relação à escola, mas que lá não encontravam nada, exceto o local onde podiam se encontrar com os colegas”, disse Amaral.

No Dia do Índio, os estudantes retrataram diversas etnias existentes no Brasil, menos os Pankararu. Os pesquisadores consideraram aquilo muito intrigante, uma vez que a comunidade Pankararu, constituída pela miscigenação de indígenas, negros e sertanejos brancos, foi a primeira a se instalar nas favelas vizinhas do Real Parque e do Jardim Panorama. Essa população chegou ao recém-implantado bairro do Morumbi na década de 1950, com a leva de trabalhadores nordestinos contratados para construir o Estádio do Morumbi, o Palácio dos Bandeirantes e outras obras de grande porte.

“Buscando conhecer o motivo dessa omissão, descobrimos que os alunos tinham vergonha de sua origem. Quando perguntamos em classe se havia alguém que pertencia à comunidade Pankararu, todos se calaram. Depois de muitos titubeios, uma jovem disse: ‘Eu conheço os Pankararu’. ‘De que maneira?’, interrogamos. ‘Meu pai é um deles’, ela respondeu. E acrescentou: ‘Eles comem com a mão’. Era um discurso totalmente cindido”, relatou Amaral.

Os pesquisadores estudaram a história dos Pankararu, que verificaram ser de “sofrimento e tenacidade”: o aldeamento forçado; a miscigenação de várias etnias indígenas, de negros e de brancos, que se reuniram em torno do nome “Pankararu”, para ter alguma identidade; as migrações para o Sudeste, provocadas pela pobreza; a construção das hidrelétricas de Paulo Afonso e Itaparica, no rio São Francisco, que cortou a relação do povo com sua ancestralidade.

A “dança dos praiás” no rito de passagem dos Pankararu no Real Parque, em São Paulo. Foto: Antonio Scarpinetti / Unicamp.

Por outro lado, houve a manutenção de elementos simbólicos e rituais, que possibilitaram que os Pankararu preservassem sua “indianeidade” no contexto da diáspora.

Informações mais detalhadas sobre os Pankararu pode ser acessadas em https://pib.socioambiental.org/pt/povo/pankararu e http://www.indiosonline.net/?s=Pankararu.

“Toda essa saga foi resgatada durante a pesquisa. Hoje muitos desses jovens Pankararu são rappers, orgulhosos de sua ancestralidade. E tive uma prova de sucesso quando, voltando à área anos mais tarde, um menino loiro, que não tinha nada de indígena, veio me perguntar se estava tocando bem o chocalho. Eu respondi que sim. Ao que ele afirmou: ‘Então, agora, eu posso ser um Pankararu!’. A relação havia se invertido. Se, antes, ser Pankararu era motivo de vergonha, depois, passou a ser uma aspiração, mesmo para quem não era”, disse Amaral.

Mas essa transformação não ocorreu por um passe de mágica. Foi necessário superar grandes desafios. “Quando chegamos à escola, esses estudantes se encontravam totalmente abandonados. Pareciam crianças sem referências. Um falando sozinho, outro repetindo slogans da TV, outra fazendo lições de professores inexistentes, e um grupo fazendo bagunça no fundo da sala. Havia dias com seis classes sem aula, por falta de professores. Então, eu descobri que, no meio da bagunça do fundão, tinha batuque e cantoria. E havia um professor bom de rimas, que começou a desafiar os meninos. Com esse estímulo, eles passaram a construir um rap, que ficou famoso e motivou até uma reportagem de televisão”, disse.

Jovens do Rap Real, Projeto Casulo do Real Parque. Imagem: Reprodução / Youtube.

Aqui vai um trecho da letra desse rap (citado no livro), com a ortografia, a sintaxe e a pontuação adotadas pelos autores:

“Às vezes para vencer na vida é preciso ser agressivo
Somos grupo Elementos pensamentos positivo
Nosso governo é sinistro e só quer ganhar dinheiro
Aqui os mano não se ilude aqui os mano é brasileiro
Por isso eu te falo com muita convicção
O crime é para quem é e não serve para mim não
É ‘inadmirável’uns truta da quebrada
Fazendo 157 ou seja assalto à mão armada
A falta de emprego e ‘compreenção’
Transporta o ‘piveti’ pra vida de ladrão
A falta de emprego e ‘compreenção’
Mata os sonho da pessoa e joga dentro do caixão”

O potencial crítico e criativo dos alunos estava escondido por trás da apatia e da bagunça. Era preciso que fosse reconhecido e acolhido. “Refletindo Favela Real Parque: HipHop é manifestação. Foto: Glenda Almeida / USP.sobre tudo isso, entendemos que os rumos daquela escola precisavam ser mudados. Em primeiro lugar, era preciso ter professores. Depois, era preciso ter um currículo culturalmente relevante. Indo adiante, era preciso construir um projeto interdisciplinar, fazendo com que as diversas disciplinas (história, geografia, português, ciências, informática) reconhecessem os elementos culturais que aqueles jovens estavam apresentando, articulassem tais elementos com suas histórias de vida, para depois articulá-los também com referências mais amplas”, argumentou a educadora.

Os professores começaram a se reunir e a montar um projeto interdisciplinar, envolvendo rap, literatura de cordel, repente, embolada, a história do sertão, a história do êxodo de indígenas e nordestinos rumo ao Sul, a história da diáspora maior, africana, através do Atlântico. Era um resgate das origens, mas que não se detinha nelas, e seguia adiante.

“Daí veio a frase que daria título ao livro: ‘O que o rap diz e a escola contradiz’. Porque o rap fala da situação do jovem na periferia. Fala da discriminação vivida por eles, principalmente em bairros de muito contraste social como o Morumbi, onde os jovens pobres são proibidos de circular livremente. Se vão a uma grande padaria, se vão a uma rua de condomínios luxuosos, eles são expulsos. Têm que ficar restritos ao pedaço em que moram, e que não dispõe de nenhum espaço de socialização, de convivência, além da escola”, disse Amaral.

“Infelizmente – e por isso eu digo que a escola contradiz –, existe uma estrutura nas diretorias regionais de ensino que cerceia a experimentação e a criatividade. Fica tudo na dependência de que haja um bom diretor e bons coordenadores, suficientemente corajosos e persistentes para bancar essa abertura”, prosseguiu.

A imagem da capa do livro, um graffiti criado pelos artistas de rua Val OPNI e Toddy OPNI, resume, imageticamente, a história da pesquisa. A figura central é a de uma jovem, meio menina, meio mulher, cujo fenótipo combina elementos africanos e indígenas, e cujo olhar expressa um misto de angústia e esperança. Com as mãos, essa jovem faz uma magia e, como um mago que tira coelhos da cartola, materializa no ar os elementos distintivos do hip-hop: o spray, do graffiti; os livros, associados à escola e ao conhecimento; o microfone, do rapper; o tênis e o CD, da dança break.

No fundo, a imagem mostra a construção do Estádio do Morumbi, feita por trabalhadores nordestinos na década de 1950, dentre eles, os afro-indígenas da etnia Pankararu. No fundo também, na outra extremidade do quadro, os incêndios criminosos das favelas da região, que se repetiram até que, liderados por algumas jovens que haviam participado da pesquisa, os moradores conseguiram registrar suas posses por usucapião e foi feita a reurbanização da área.

Serviço

O que o rap diz e a escola contradiz: um estudo sobre a arte de rua e a formação da juventude na periferia de São Paulo
Autora: Mônica do Amaral
Editora: Alameda.
Ano: 2016/2017.
Páginas: 258.
Preço: R$ 46.

***
Por José Tadeu Arantes, Agência FAPESP.

 

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