Contrariando a ideia geral que classifica os usuários como “zumbis”, a reportagem compreendeu que o fluxo está em constante movimento. No meio da rua ficam as barracas de venda da droga – carros não passam. Nas calçadas os usuários consomem o que acabaram de comprar. O movimento é contínuo: usuários vão até a rua, compram a pedra, voltam para a calçada, consomem, entram de novo, compram mais, voltam para a calçada. Tudo é trocado, oferecido, pedido, num escambo contínuo: “Quem troca um maço de cigarro numa bermuda?”, “Quem tem um isqueiro pra trocar num cachimbo novo?” – as pessoas gritam.
Música constante, de vários radinhos e mp3 players, e às vezes dos alto-falantes levados pelas igrejas que visitam a região. Roupas malucas, estilosas, esfarrapadas. As roupas também são trocadas, o gorro colorido que estava na cabeça do cara com quem você conversou hoje de manhã estará na cabeça de uma mocinha à tarde. Pertences espalhados, roupas, esmaltes, livros, todo tipo de objeto pessoal. Cheiro de fritura vindo dos pequenos bares, cheiro de crack; muita poeira, o ar seco, cheiro de mijo velho e de todas as sujeiras possíveis. Cerveja, pinga, maconha, cigarros, tosses carregadas, risadas, gritaria, algumas brigas; eventualmente um choro. É uma balada – não esqueça isso: em algum canto daquilo tudo, é uma espécie de festa. Afinal as pessoas estão se drogando. Como definiu o amigo Clerouak, da turma da Casa Rodante, que realiza ações culturais dentro da ótica de redução de danos, “a cracolândia é o Woodstock do fim do mundo”.
Numa esquina do fluxo, fica uma base da Polícia Militar; na outra esquina, uma grande tenda da Guarda Civil. Na rua adjacente, o imponente prédio do Recomeço, programa de assistência do governo do estado que oferece tratamento médico para a dependência química; à frente dele, a tenda do programa De Braços Abertos, da prefeitura de São Paulo. E o fluxo segue.
O programa De Braços Abertos foi implantado em 2014 pela prefeitura de Fernando Haddad, após o desmonte da chamada “favelinha da cracolândia”. Na época, usuários moravam em 150 barracos que ocupavam a Helvétia e a Dino Bueno. Segundo a prefeitura, foi feito um acordo com esses moradores, que foram cadastrados e encaminhados para moradia em sete hotéis da região.
Hoje são cerca de 450 beneficiários que, além da moradia nos hotéis, recebem três refeições diárias, oferecidas por meio de convênio com a rede de restaurantes do governo do estado Bom Prato. Além disso, os beneficiários são alocados em frentes de trabalho, nas quais recebem remuneração diária de R$ 15 por um turno de quatro horas (em funções de jardinagem ou varrição) ou frequência nas oficinas de capacitação (cabeleireiro, artesanato, artes, mecânica, entre outras). O pagamento é semanal, às sextas-feiras.
Críticos do programa – como a vereadora Soninha Francine, que, nomeada secretária de Assistência e Desenvolvimento Social da próxima gestão municipal, deverá lidar diretamente com a questão a partir de janeiro – argumentam que oferecer dinheiro vivo para dependentes químicos é incentivar o consumo da droga. Os idealizadores defendem que a remuneração faz parte do “pacote de direitos” (moradia, alimentação, trabalho e renda) que permite a pessoas em situação de “vulnerabilidade extrema” resgatar sua cidadania, o que seria o primeiro passo para sair da dependência química.
Opositores mais ferrenhos consideram que o programa utiliza dinheiro público para “sustentar viciados”. O orçamento anual do programa é de aproximadamente R$ 12 milhões, contra R$ 80 milhões do estadual Recomeço. Especialistas em políticas públicas, dependência química, psiquiatras, médicos, gestores – todos se digladiam na polêmica. Mas, afinal, o que pensam os usuários?
Desta pergunta nasceu o documentário Noia.
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Por Sofia Amaral na Agência Pública.