Troque um trem por uma rima

Nas estações de trem de São Paulo há de tudo um pouco: músicos, poetas, pedintes, loucos, vendedores, missionários… Prender a atenção de quem passa apressado, mais preocupado em não levar uma bronca do chefe, da namorada ou do marido, de enxergar mais cedo o sorriso do filho, costuma ser tarefa inglória. Andréia Garcia encara, porém, o desafio com humor, movida pela crença de que os livros melhoram a vida dos leitores. Naquele 13 de maio, aniversário da Abolição da Escravatura no Brasil, ao pé das escadas de acesso às linhas 11 e 12 da CPTM no Terminal Tatuapé, ela comandava a sexta edição de seu Sarau até Quarta. Escritores, poetas e músicos homenageavam Carolina Maria de Jesus, negra criada em uma favela, autora do clássico Quarto de Despejo, obra precursora da literatura marginal no País.

Entre os integrantes do sarau, Débora Garcia, sem parentesco com a organizadora, lia trechos da obra de Carolina de Jesus. Um pouco antes, a música de Victor Cali havia atraído dezenas de curiosos para o evento iniciado às 7h10 da noite e encerrado, com muito custo, duas horas depois. “Quem frequenta sarau sabe que, se não se estabelecer uma hora-limite, varamos a noite. Mas no outro dia acordamos cedo para trabalhar, né?”, brinca a idealizadora.

Andréia Garcia tem 42 anos e trabalha com Tecnologia da Informação, setor no qual bits e bytes, a linguagem das máquinas, são mais importantes do que as palavras humanas. A exemplo de boa parte dos moradores da Grande São Paulo (ela vive no município de Suzano), gasta muito tempo no deslocamento diário entre sua casa e o trabalho. São ao menos três horas no transporte público. Um fardo? Não, segundo ela.  “Nunca fui mal-humorada e não encaro como sacrifício. É uma parte pequena do meu dia para estragá-lo por completo.”

Com um olhar atento às múltiplas realidades que a cercam, principalmente dentro dos vagões, Andréia começou a escrever pequenos registros, que logo se transformaram em crônicas, inspirados nas diversas situações e personagens do dia a dia. Há pouco mais de dois anos, criou um site, A Viajante do Trem, para desovar a produção. A experiência levou-a a se unir a Sidney Leal e criar o sarau nas plataformas de trem, sempre às quartas-feiras. A ideia, afirma, é “levar cultura para um espaço público, em horário de pico, para os passageiros terem algo que os fizessem atrasar a viagem com alegria, além de ser uma oportunidade para se expressar”.  A CPTM apoia a iniciativa e cede cadeiras, microfones e amplificadores, além de divulgar os eventos em sua rede, realizados mensalmente no mezanino da Estação Brás, embora a sexta edição aqui relatada tenha ocorrido no Tatuapé, em homenagem aos 23 anos da companhia de trem e dos 15 anos de inauguração do Expresso Leste.

A escritora não esconde a fonte de inspiração, o Sarau Suburbano criado por Alessandro Buzo e já tradicional na capital paulista. Andréia conheceu a experiência no ano passado e ouviu do mentor: sarau vicia. De fato. Desde então, ela tornou-se uma habitué desse tipo de encontro. “O Buzo foi o cara que me colocou nesse cenário. Até então nem conhecia esse movimento, infelizmente.”

Andréia não ganha dinheiro com a iniciativa. Nem é esse o objetivo. “Por mais que possa parecer chavão, a realização não tem preço.” Ela aprecia particularmente acompanhar quem no início assiste de longe, tímido, e aos poucos ganha coragem para subir ao palco. “A energia é tanta que eles mudam de ideia, pois percebem tratar-se de um espaço democrático. Mesmo se alguém subir e declamar ‘Batatinha quando nasce…’, vai ser bem recebido e aclamado.” São senhoras envergonhadas, escritores independentes, cantores, compositores e diversos artistas. Os temas mais comuns versam sobre questões sociais, da pobreza aos preconceitos de diversos tipos e gêneros. “Nos saraus o participante é sempre importante, nunca mais um. Ninguém quer saber sua origem, o que faz ou o que fez. É um lugar para todos serem felizes, e isso contagia.”

Toda essa empolgação rendeu a Andréia outras oportunidades e experiências. O Viajante do Trem virou livro e, atualmente, ela escreve crônicas em dois jornais diferentes, o Diário do Alto Tietê e O Estação. “Devo muito aos trilhos”, diz, antes de abrir um largo sorriso.

Rodrigo Casarin na Carta Capital.

 

 

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