O salto de Rubens Oliveira

No caso dele, a oportunidade veio, primeiro, pelo projeto Arrastão, de Campo Limpo, bairro da Zona Sul de São Paulo, e, depois, pelo projeto Dança Comunidade, do coreógrafo Ivaldo Bertazzo. “A realidade da arte no país é muito complexa e, se não tiver alguém que diga que você pode viver dela, você passa a vida como admirador”, diz ele. Aos 30 anos, Rubens já dividiu o palco com grandes nomes do cenário artístico brasileiro, dançou fora do país e viajou para os Estados Unidos, França, Inglaterra, Áustria e África para se aperfeiçoar, mas jamais se esqueceu de suas origens.
 
Rubens tinha tudo para tornar-se um bom músico. O pai, pastor de uma igreja evangélica, na praia de Jacaraípe, no Espírito Santo, tocava vários instrumentos e incentivou os cinco filhos a seguir pelo mesmo caminho. Quatro deles tocam até hoje, mas o caçula ficou apenas na tentativa. “Não tive muito sucesso, gostei mais do teclado, mas não fui à frente com nada”, diz Rubens. A música, no entanto, continuou fazendo parte da vida dele. Aos 12 anos, no bairro de Campo Limpo, na Zona Sul de São Paulo, para onde se mudou com a mãe, depois da separação dos pais, interessou-se pela dança de rua e juntou-se a um grupo da igreja que frequentava. Copiava clipes, ensinava os colegas e assim foi se destacando, até que o convidaram a liderar e conduzir o grupo nos festivais amadores entre igrejas.
 
Quando Rubens tinha 15 anos, a irmã trabalhava no Projeto Arrastão e o levou para lá. Um professor de educação física estava montando um grupo de percussão com instrumentos recicláveis e o convidou para criar uma coreografia. O Arrasta Lata foi um sucesso e tocou com vários grupos e artistas famosos, entre eles Titãs, Daniela Mercury e Gilberto Gil. “Aquilo foi um grande laboratório pra mim”, diz Rubens. Talvez ali ele tenha percebido por que não avançou com os instrumentos. A música era tão contagiante que ele queria usar o corpo todo. “Eu descobri que tinha um talento natural para ouvir a música e me movimentar.”
Ensaio com o grupo Pélagos no Projeto Arrastão. Foto: Marcia Minillo.
Dois anos depois, em 2002, uma professora do Arrastão levou o grupo para ver o espetáculo “Dança das Marés”, montado pelo coreógrafo Ivaldo Bertazzo com 62 jovens nascidos no Complexo da Maré, na Zona Norte do Rio de Janeiro. Essa era a terceira montagem do grupo, criado três anos antes. “Quando vi o espetáculo fiquei fascinado”, diz Rubens. Naquele momento ele teve a certeza de que a dança era o que queria fazer para o resto da vida. Por sorte ou destino, diz ele, logo depois a produção do Ivaldo convidou sete organizações não governamentais, entre elas o Arrastão, para participar da seletiva para a criação do projeto em São Paulo. A ideia de Bertazzo era ensinar o método criado por ele durante um ano para os 55 jovens selecionados para que eles servissem de multiplicadores em suas comunidades. “Mas ele não sabia que a gente viria com tanta sede; e a gente, que mergulharia tão fundo”, diz Rubens, claro, um dos selecionados.
 
O projeto de Bertazzo ganhou grande repercussão e foi um sucesso de público. Com ele, Rubens fez uma carreira relâmpago. Foram quatro espetáculos em quatro anos, com Voando alto em Viena, Áustria. Foto: Karin Steger.apresentações no Brasil e no exterior. O grupo se profissionalizou, passou a ter formação complementar, assim como horário fixo de trabalho e carteira assinada. Uma das passagens mais marcantes para Rubens foi a oportunidade de contracenar com Fernanda Montenegro. “Foi uma emoção e um aprendizado muito grande”, diz Rubens, que ficou encantado com o modo como a atriz se movimentava no palco, projetava a voz e se preparava no camarim.

De corpo e alma na profissão, Rubens passou a dar aulas na escola de Bertazzo e a atuar como seu assistente. O quarto e último espetáculo de que participou na companhia foi “Noé, Noé! Deu a Louca no Convés”, no qual os bailarinos contracenavam com atores e cantores, como num teatro musical. Nesse momento, a rotina de Rubens era alucinante: aula de manhã, ensaio à tarde e espetáculo à noite. Além disso, tinha outros trabalhos paralelos, como campanhas publicitárias, workshops, participação numa minissérie de TV. “Percebi que algo estava me chamando a alçar vôo”, diz ele, que na época tinha 23 anos.

E foi o que fez, mesmo sabendo que isso representaria um recomeço. “É difícil sair do lado de um mestre e ficar no mesmo patamar”, diz. “Tive de construir o meu lugar, a minha linguagem.” Mergulhou, então, na sua história, na sua rica experiência de vida e profissional e, naturalmente, as oportunidades começaram a aparecer. Logo, já estava à frente de dois projetos, o Gumboot Dance Brasil e o grupo Chega de Saudade, que criou em parceria com o jornalista e psicanalista Sérgio Ignácio, oriundo do Cidadão Dançante, de Ivaldo Bertazzo.

Gumboot

Quando foi montado o espetáculo Milágrimas, Rubens fez contato com o grupo de canto e dança sul-africano  Kholwa Brothers , responsável pela trilha sonora do espetáculo, e ficou maravilhado com o que viu. “A dança que eles trouxeram me levou para as minhas origens, me fez pensar na minha família”, diz Rubens. Gumboot, que quer dizer botas de borracha, é uma dança que teve origem no século XIX nas minas de ouro da África do Sul. No início, era uma forma de comunicação entre esses trabalhadores, originários de várias tribos com dialetos diferentes. Depois, virou entretenimento, já que eles eram impedidos de tocar seus instrumentos. Hoje, é uma dança bastante difundida na África e aos poucos vai ganhando os palcos do mundo todo.

Gumboot Dance Brasil e o espetáculo Yebo. Foto: Marcia Minillo.

Os Kholwa Brothers vieram pela primeira vez ao Brasil em 2005, para compor a trilha do espetáculo, e voltaram três anos depois para se apresentar no país. “Ficava grudado neles o tempo todo”, diz Rubens. “Queria aprender tudo sobre a dança, aqueles movimentos, conhecer a história.” Decidiu, então, montar com amigos e ex-alunos um grupo de estudos, que deu origem ao Gumboot Dance Brasil, em 2009. Dois anos depois, o grupo estreou Yebo, que significa “Sim, Vamos”, uma das expressões mais usadas nas minas africanas da época. O espetáculo contou com a participação da banda paulistana Afro Electro, que pesquisa a musicalidade africana. Disposto a mergulhar ainda mais nos estudos, Rubens embarcou logo depois para a África. E em 2014, fez nova montagem do espetáculo, com novo elenco, entre atores, músicos, artistas e técnicos. “Queria também estar mais presente no palco e voltei a investir no meu aperfeiçoamento como bailarino”, diz Rubens. Esta é, hoje, sua principal atividade artística. Ele também é professor de dança numa escola particular e numa academia.

Chega de Saudade

Também em 2009, Rubens passou a desenvolver um trabalho com ex-integrantes do projeto Cidadão Dançante, de Ivaldo Bertazzo. “As pessoas estavam saudosas das aulas de Pélagos no Projeto Arrastão. Foto: Marcia Minillo.dança e acabaram se comunicando pelas redes sociais”, conta Rubens. Foi aí que nasceu o Chega de Saudade, reunindo pessoas de diversas formações profissionais, de várias faixas etárias e com experiências diferentes de vida. “Nosso propósito era fazer com que o público se identificasse com os bailarinos, sentisse que  qualquer pessoa da plateia poderia estar no palco”, diz Rubens. “A dança não pode excluir.” Com o grupo, montou os espetáculos Carretel (2012), Grão (2013), Correm as Cidades nos Quatro Cantos do Mundo (2014) e Koan (2015). No último, Rubens trouxe jovens formados nas oficinas do Arrastão para a confecção dos figurinos e do cenário e a trilha sonora foi composta pelo grupo Acid Tree. O espetáculo foi realizado no Auditório do Masp e teve grande repercussão.

Pélagos

No mesmo ano de 2009, Rubens já havia se mudado do bairro do Campo Limpo para o centro da cidade, mas continuava frequentando o Arrastão sempre que tinha uma folga. “Minha família mora lá até hoje”, diz. Decidiu, então, propor um projeto para a ONG. Nascia ali o Núcleo de Dança Pélagos, com 30 jovens, com trajetórias de vida semelhantes à dele quando chegou ao projeto. “O jovem da periferia merece um espaço onde possa colocar toda a sua riqueza interior, as suas sensações”, diz Rubens. Além de aulas de dança, os adolescentes têm uma série de aulas teóricas, como história da dança e empreendedorismo.
Oito meses depois, o grupo estreou o espetáculo Volúpia no Ceu (Centro Educacional Unificado) de Campo Limpo, com casa lotada todos os dias durante duas semanas. “Foi um sucesso”, diz Rubens, que ao final de cada apresentação fazia uma roda de conversa com o público sobre o espetáculo, para falar das paixões e inquietações vividas pelos adolescentes.

O segundo espetáculo, Garimpo, de 2012, foi inspirado no projeto Serra Pelada do fotógrafo Sebastião Salgado. Esse trabalho reforçou ainda mais em Rubens a certeza de que é possível fazer trabalhos de qualidade na periferia. “Eu só percebi isso depois que saí de lá”, diz ele. “Hoje, a produção cultural é grande e seria mais relevante ainda se houvesse maior estrutura.”

O último trabalho do grupo, em 2015, foi Y Khyssa, que significa “O Que é Meu” no dialeto Yathê, da tribo indígena Fulni-ô, de Pernambuco, e explora o autoconhecimento. Nesse momento, Rubens corre atrás de patrocínio para continuar com o trabalho no grupo, que já rendeu bons frutos. “Uma das bailarinas conseguiu vaga na Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia, dois bailarinos integram o Gumboot, outro montou sua própria companhia”, diz ele, que compreende e incentiva esse movimento. Afinal, para todo mundo, mais cedo ou mais tarde, chega a hora de bater as asas.

 
Grupo de dança Pélagos no CEU Campo Limpo. Foto: Marcia Minillo.
Recentemente, Rubens foi convidado pelo Instituto Pallas Athena para coreografar a apresentação de dança da 2ª Semana Nelson Mandela no Sesc Vila Mariana. O evento, com mais cinco bailarinos, foi um sucesso, com auditório lotado e público aplaudindo de pé. Do Sesc, ele foi correndo fazer as malas e embarcou para Viena, na Áustria, para participar do Impustanz, um dos maiores festivais de dança do mundo. Integrou ainda um projeto de pesquisa dentro do próprio festival, em Viena, chamado DanceWeb, com bailarinos professores e coreógrafos do mundo inteiro. Nem precisa dizer que voltou cheio de novidades e experiências incríveis para compartilhar com alunos, colegas e com o público aqui no Brasil.

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Por Marina Izidoro no Sampa Inesgotável em parceria de conteúdo com o São Paulo São. 

 

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